sábado, 10 de agosto de 2019

O estranho destino do Rio Kubango

Nasser Evangelista sentia-se feliz no novo emprego. Vestia uma farda azul, muito limpa, e passava a maior parte do tempo sentado a uma secretária, a ler, enquanto pelo canto do olho vigiava a porta. Tomara o gosto pela leitura durante os anos em que estivera detido, na prisão de São Paulo, em Luanda. Depois de solto trabalhara como artesão, esculpindo máscaras, no Mercado do Km 17. Uma tarde encontrou Pequeno Soba, com quem partilhara uma cela, e este convidou-o para trabalhar como porteiro no Prédio dos Invejados, ao Quinaxixe, para o qual acabara de se mudar:
É um emprego tranquilo, assegurou-lhe o empresário: Você vai poder ler.
Com isso o convencera. Naquela manhã, Nasser Evangelista relia, pela sétima vez, as aventuras de Robinson Crusoe, quando reparou num garoto muito feio, de rosto cravado de borbulhas, a rondar a entrada do prédio. Marcou a página. Guardou o livro na gaveta. Ergueu-se e caminhou até à porta:
Hei, você! O borbulhoso. O que quer do meu prédio?
O garoto aproximou-se, intimidado:
O senhor sabe se aqui vive um menino?
Vivem vários, canuco. Este prédio é uma metrópole.
Um menino de sete anos, nome dele é Sabalu.
Ah, sim! Sabalu, sei quem é. Décimo primeiro E. Muito simpático. Vive com a avó, mas a ela nunca vi. Não sai de casa.
Nesse momento, surgiram dois outros personagens. Nasser sobressaltou-se, ao vê-los galgar a rua, ambos vestidos de preto, como se irrompessem de uma aventura de Corto Maltese. O mais velho trazia na cabeça um gorro mucubal, às listas vermelhas e amarelas, colares ao pescoço, largas pulseiras nos braços. Calçava umas sandálias velhas, de couro, que deixavam ver uns pés enormes, gretados, cobertos de pó. Ao lado do velho, movendo-se com a elegância de quem desfila numa passarela, ia um jovem muito alto e magro. Exibia também pulseiras e colares, mas nele tais adereços pareciam tão naturais quanto o chapéu de coco que lhe cobria a cabeça. Os dois homens avançaram decididos na direção de Nasser. Vamos lá acima, informou o jovem, ao mesmo tempo que, com um gesto enfadado, afastava o porteiro. Nasser recebera instruções muito rigorosas para não deixar subir ninguém sem primeiro tomar nota do respetivo número do bilhete de identidade ou carta de condução. Preparava-se para travar os dois personagens, quando Baiacu, fintando-o, se lançou escadas acima. O porteiro seguiu-o. Jeremias e o filho chamaram o elevador, entraram, e subiram. Ao saírem, no décimo primeiro, o velho sentiu uma tontura. Faltou-lhe o ar. Apoiou-se um instante à parede. Viu Daniel Benchimol, que cumprimentava Ludo, e reconheceu-a, mesmo nunca tendo estado com ela.
Tenho uma carta para si, dizia Daniel: Talvez seja melhor entrarmos, a senhora senta-se e conversamos.
Enquanto isto acontecia, Magno Moreira Monte entrava no prédio. Não encontrando o porteiro, chamou o elevador e subiu. Escutou, enquanto subia, os gritos de Nasser perseguindo Baiacu:
Volte. Você não pode subir!
Também Pequeno Soba, que estava em casa, a fazer a barba, se assustou com os gritos do porteiro. Lavou o rosto, vestiu umas calças e foi à porta espreitar o escândalo. Baiacu passou por ele a correr, empurrou os pastores, e deteve-se a poucos metros de Daniel Benchimol. Logo a seguir abriu-se a porta do elevador e o ex-prisioneiro encarou, surpreso, o homem que, há vinte e cinco anos, o interrogara e torturara.
Baiacu tirou uma navalha de ponta-e-mola do bolso das calças, abriu-a e mostrou-a a Sabalu:
Ladrão! Vou cortar suas orelhas!
O menino enfrentou-o:
Venha. Já não tenho medo de você!
Ludo empurrou-o para o interior do apartamento:
Entra, filho. Fizemos mal em abrir a porta.
Nasser Evangelista caiu sobre Baiacu, e desarmou-o:
Calma, miúdo, larga lá isso. Vamos conversar.
O espanto de Pequeno Soba alegrou Monte:
Ah, Camarada Arnaldo Cruz! Quando ouço alguém falar mal de Angola cito sempre o seu exemplo. Um país onde até os malucos enriquecem, mesmo os inimigos do regime, tem de ser, por força, muito generoso!
António, atordoado com a soma de acontecimentos, soprou ao ouvido do velho, no curvo idioma dos kuvale:
Esta gente não tem bois, meu pai. Nada sabem de bois.
Daniel Benchimol segurou o braço de Ludo:
Espere um pouco, senhora. Leia a carta.
Pequeno Soba espetou o dedo indicador no peito de Monte:
Está a rir de quê, hiena? O tempo das hienas acabou.
Ludo devolveu o envelope:
Os meus olhos já não servem para ler.
Monte afastou o braço de Pequeno Soba, e girando o corpo reparou em Jeremias. A coincidência pareceu alegrá-lo ainda mais:
Ora, ora, outra cara conhecida. O nosso reencontro, lá, no Namibe, não correu bem. Ao menos para mim. Mas desta vez vocês estão no meu território.
Daniel Benchimol estremeceu ao escutar a voz de Monte. Voltou-se para o detetive:
Estou a lembrar-me do senhor. Acordou-me na noite em que Simon-Pierre desapareceu. A ideia era fazer-me desaparecer a mim – certo?
A esta altura já todos os olhares convergiam para o antigo agente. Nasser Evangelista soltou Baiacu e avançou para Monte, enfurecido, de navalha em riste:
Também eu me lembro do senhor, e não são memórias felizes.
Monte, vendo-se cercado por Jeremias, António, Pequeno Soba, Daniel Benchimol e Nasser Evangelista, começou a recuar em direção às escadas:
Calma, calma, o que passou, passou. Somos todos angolanos.
Nasser Evangelista não o ouviu. Escutava os próprios gritos, um quarto de século antes, numa cela estreita, a cheirar a merda e a mijo. Escutava os gritos de uma mulher que nunca chegou a ver, vindos de uma idêntica escuridão. Gritos e o ladrar de cães. Atrás dele tudo gritava. Tudo ladrava. Avançou dois passos e empurrou a lâmina de encontro ao peito de Monte. Surpreendeu-se por não encontrar resistência. Repetiu o gesto uma e outra vez. O detetive cambaleou, muito pálido, e levou as mãos à camisa. Não viu sangue. As roupas estavam intactas. Jeremias agarrou Nasser pelos ombros e puxou-o para si. Daniel arrancou-lhe a navalha da mão:
É falsa. Graças a Deus, é uma faca de circo.
Assim era. A navalha possuía um cabo oco, com uma mola, para o qual a lâmina deslizava, escondendo-se, sempre que pressionada.
Daniel golpeou-se a si mesmo, no peito e no pescoço, para mostrar aos outros a falsidade da arma. A seguir saltou para cima de Jeremias. Esfaqueou Nasser. Ria alto, em gargalhadas amplas, histéricas, que os restantes acompanhavam. Também Ludo se ria, agarrada a Sabalu, as lágrimas correndo-lhe dos olhos.
Apenas Monte permanecia sério. Esticou a camisa, endireitou as costas, desceu as escadas. Lá fora o ar escaldava. Um vento seco sacudia as árvores. O detetive respirava com esforço. Doía-lhe o peito, não onde Nasser acertara as facadas fictícias, mas por dentro, em algum lugar secreto, a que ele não sabia dar um nome. Enxugou os olhos. Tirou os óculos escuros do bolso das calças e colocou-os no rosto. Veio-lhe à memória, sem razão aparente, a imagem de uma canoa flutuando no Delta do Okavango.
O Kubango passa a chamar-se Okavango ao cruzar a fronteira com a Namíbia. Sendo um grande rio não cumpre o destino comum aos seus pares: não desagua no mar. Abre os fortes braços e morre em pleno deserto. É uma morte sublime, generosa, que enche de verde e de vida as areias do Kalahari. Monte passara o trigésimo aniversário do seu casamento no Delta do Okavango, numa pousada ecológica – um presente dos filhos. Haviam sido dias afortunados, ele e Maria Clara, caçando coleópteros e borboletas, lendo, passeando de canoa.
Certas pessoas padecem do medo de ser esquecidas. A essa patologia chama-se atazagorafobia. Com ele sucedia o oposto: vivia no terror de que nunca o esquecessem. Lá, no Delta do Okavango, sentira-se esquecido. Fora feliz.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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