Nasser
Evangelista sentia-se feliz no novo emprego. Vestia uma farda azul,
muito limpa, e passava a maior parte do tempo sentado a uma
secretária, a ler, enquanto pelo canto do olho vigiava a porta.
Tomara o gosto pela leitura durante os anos em que estivera detido,
na prisão de São Paulo, em Luanda. Depois de solto trabalhara como
artesão, esculpindo máscaras, no Mercado do Km 17. Uma tarde
encontrou Pequeno Soba, com quem partilhara uma cela, e este
convidou-o para trabalhar como porteiro no Prédio dos Invejados, ao
Quinaxixe, para o qual acabara de se mudar:
É
um emprego tranquilo, assegurou-lhe o empresário: Você vai poder
ler.
Com
isso o convencera. Naquela manhã, Nasser Evangelista relia, pela
sétima vez, as aventuras de Robinson Crusoe, quando reparou num
garoto muito feio, de rosto cravado de borbulhas, a rondar a entrada
do prédio. Marcou a página. Guardou o livro na gaveta. Ergueu-se e
caminhou até à porta:
Hei,
você! O borbulhoso. O que quer do meu prédio?
O
garoto aproximou-se, intimidado:
O
senhor sabe se aqui vive um menino?
Vivem
vários, canuco. Este prédio é uma metrópole.
Um
menino de sete anos, nome dele é Sabalu.
Ah,
sim! Sabalu, sei quem é. Décimo primeiro E. Muito simpático. Vive
com a avó, mas a ela nunca vi. Não sai de casa.
Nesse
momento, surgiram dois outros personagens. Nasser sobressaltou-se, ao
vê-los galgar a rua, ambos vestidos de preto, como se irrompessem de
uma aventura de Corto Maltese. O mais velho trazia na cabeça um
gorro mucubal, às listas vermelhas e amarelas, colares ao pescoço,
largas pulseiras nos braços. Calçava umas sandálias velhas, de
couro, que deixavam ver uns pés enormes, gretados, cobertos de pó.
Ao lado do velho, movendo-se com a elegância de quem desfila numa
passarela, ia um jovem muito alto e magro. Exibia também pulseiras e
colares, mas nele tais adereços pareciam tão naturais quanto o
chapéu de coco que lhe cobria a cabeça. Os dois homens avançaram
decididos na direção de Nasser. Vamos lá acima, informou o jovem,
ao mesmo tempo que, com um gesto enfadado, afastava o porteiro.
Nasser recebera instruções muito rigorosas para não deixar subir
ninguém sem primeiro tomar nota do respetivo número do bilhete de
identidade ou carta de condução. Preparava-se para travar os dois
personagens, quando Baiacu, fintando-o, se lançou escadas acima. O
porteiro seguiu-o. Jeremias e o filho chamaram o elevador, entraram,
e subiram. Ao saírem, no décimo primeiro, o velho sentiu uma
tontura. Faltou-lhe o ar. Apoiou-se um instante à parede. Viu Daniel
Benchimol, que cumprimentava Ludo, e reconheceu-a, mesmo nunca tendo
estado com ela.
Tenho
uma carta para si, dizia Daniel: Talvez seja melhor entrarmos, a
senhora senta-se e conversamos.
Enquanto
isto acontecia, Magno Moreira Monte entrava no prédio. Não
encontrando o porteiro, chamou o elevador e subiu. Escutou, enquanto
subia, os gritos de Nasser perseguindo Baiacu:
Volte.
Você não pode subir!
Também
Pequeno Soba, que estava em casa, a fazer a barba, se assustou com os
gritos do porteiro. Lavou o rosto, vestiu umas calças e foi à porta
espreitar o escândalo. Baiacu passou por ele a correr, empurrou os
pastores, e deteve-se a poucos metros de Daniel Benchimol. Logo a
seguir abriu-se a porta do elevador e o ex-prisioneiro encarou,
surpreso, o homem que, há vinte e cinco anos, o interrogara e
torturara.
Baiacu
tirou uma navalha de ponta-e-mola do bolso das calças, abriu-a e
mostrou-a a Sabalu:
Ladrão!
Vou cortar suas orelhas!
O
menino enfrentou-o:
Venha.
Já não tenho medo de você!
Ludo
empurrou-o para o interior do apartamento:
Entra,
filho. Fizemos mal em abrir a porta.
Nasser
Evangelista caiu sobre Baiacu, e desarmou-o:
Calma,
miúdo, larga lá isso. Vamos conversar.
O
espanto de Pequeno Soba alegrou Monte:
Ah,
Camarada Arnaldo Cruz! Quando ouço alguém falar mal de Angola cito
sempre o seu exemplo. Um país onde até os malucos enriquecem, mesmo
os inimigos do regime, tem de ser, por força, muito generoso!
António,
atordoado com a soma de acontecimentos, soprou ao ouvido do velho, no
curvo idioma dos kuvale:
Esta
gente não tem bois, meu pai. Nada sabem de bois.
Daniel
Benchimol segurou o braço de Ludo:
Espere
um pouco, senhora. Leia a carta.
Pequeno
Soba espetou o dedo indicador no peito de Monte:
Está
a rir de quê, hiena? O tempo das hienas acabou.
Ludo
devolveu o envelope:
Os
meus olhos já não servem para ler.
Monte
afastou o braço de Pequeno Soba, e girando o corpo reparou em
Jeremias. A coincidência pareceu alegrá-lo ainda mais:
Ora,
ora, outra cara conhecida. O nosso reencontro, lá, no Namibe, não
correu bem. Ao menos para mim. Mas desta vez vocês estão no meu
território.
Daniel
Benchimol estremeceu ao escutar a voz de Monte. Voltou-se para o
detetive:
Estou
a lembrar-me do senhor. Acordou-me na noite em que Simon-Pierre
desapareceu. A ideia era fazer-me desaparecer a mim – certo?
A
esta altura já todos os olhares convergiam para o antigo agente.
Nasser Evangelista soltou Baiacu e avançou para Monte, enfurecido,
de navalha em riste:
Também
eu me lembro do senhor, e não são memórias felizes.
Monte,
vendo-se cercado por Jeremias, António, Pequeno Soba, Daniel
Benchimol e Nasser Evangelista, começou a recuar em direção às
escadas:
Calma,
calma, o que passou, passou. Somos todos angolanos.
Nasser
Evangelista não o ouviu. Escutava os próprios gritos, um quarto de
século antes, numa cela estreita, a cheirar a merda e a mijo.
Escutava os gritos de uma mulher que nunca chegou a ver, vindos de
uma idêntica escuridão. Gritos e o ladrar de cães. Atrás dele
tudo gritava. Tudo ladrava. Avançou dois passos e empurrou a lâmina
de encontro ao peito de Monte. Surpreendeu-se por não encontrar
resistência. Repetiu o gesto uma e outra vez. O detetive cambaleou,
muito pálido, e levou as mãos à camisa. Não viu sangue. As roupas
estavam intactas. Jeremias agarrou Nasser pelos ombros e puxou-o para
si. Daniel arrancou-lhe a navalha da mão:
É
falsa. Graças a Deus, é uma faca de circo.
Assim
era. A navalha possuía um cabo oco, com uma mola, para o qual a
lâmina deslizava, escondendo-se, sempre que pressionada.
Daniel
golpeou-se a si mesmo, no peito e no pescoço, para mostrar aos
outros a falsidade da arma. A seguir saltou para cima de Jeremias.
Esfaqueou Nasser. Ria alto, em gargalhadas amplas, histéricas, que
os restantes acompanhavam. Também Ludo se ria, agarrada a Sabalu, as
lágrimas correndo-lhe dos olhos.
Apenas
Monte permanecia sério. Esticou a camisa, endireitou as costas,
desceu as escadas. Lá fora o ar escaldava. Um vento seco sacudia as
árvores. O detetive respirava com esforço. Doía-lhe o peito, não
onde Nasser acertara as facadas fictícias, mas por dentro, em algum
lugar secreto, a que ele não sabia dar um nome. Enxugou os olhos.
Tirou os óculos escuros do bolso das calças e colocou-os no rosto.
Veio-lhe à memória, sem razão aparente, a imagem de uma canoa
flutuando no Delta do Okavango.
O
Kubango passa a chamar-se Okavango ao cruzar a fronteira com a
Namíbia. Sendo um grande rio não cumpre o destino comum aos seus
pares: não desagua no mar. Abre os fortes braços e morre em pleno
deserto. É uma morte sublime, generosa, que enche de verde e de vida
as areias do Kalahari. Monte passara o trigésimo aniversário do seu
casamento no Delta do Okavango, numa pousada ecológica – um
presente dos filhos. Haviam sido dias afortunados, ele e Maria Clara,
caçando coleópteros e borboletas, lendo, passeando de canoa.
Certas
pessoas padecem do medo de ser esquecidas. A essa patologia chama-se
atazagorafobia. Com ele sucedia o oposto: vivia no terror de que
nunca o esquecessem. Lá, no Delta do Okavango, sentira-se esquecido.
Fora feliz.
José
Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento
Nenhum comentário:
Postar um comentário