sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Mutiati blues

O velho viu janeiro a erguer-se e a fechar-se à volta dos kuvale, como uma armadilha. Primeiro a seca. Muitos bois morreram. À medida que avançavam para leste, galgando a serra, o ar foi-se adoçando, o chão ficando mais fresco e mais macio. Encontraram algum pasto, cacimbas barrentas, e prosseguiram, decifrando com esforço os ténues indícios de verde. A vedação surgiu de surpresa, como um insulto, ofendendo o quadril luminoso da manhã. Os rebanhos detiveram-se. Os jovens juntaram-se em grupos nervosos, gritando para o alto breves frases de espanto e de revolta. António, o filho varão, aproximou-se. Suava. O belo rosto, de nariz direito, queixo bem definido, estava afogueado pelo esforço e pela cólera:
O que fazemos?
O velho sentou-se. A cerca corria durante centenas de metros. Emergia, à direita, por entre um áspero novelo de espinheiras, ali chamadas unhas-de-gato, e afundava-se, à esquerda, num pesadelo ainda mais denso, mais afiado, de bissapas, de compridos catos em forma de candelabro, e de mutiatis. Para lá da vedação abria-se um brando caminho de seixos brancos por onde, naquela altura do ano, deveria deslizar um pequeno ribeiro.
Jeremias Carrasco escolheu um graveto, alisou a areia, e pôs-se a escrever. António agachou-se a seu lado.
Nessa tarde derrubaram a vedação, e passaram para o outro lado. Encontraram alguma água. Bons pastos. Começou a ventar. O vento arrastava pesadas sombras, como se trouxesse a noite, em farrapos, arrancada a algum deserto ainda mais remoto. Escutaram o ruído de um motor e viram surgir, entre a penumbra e a poeira, um jipe transportando seis homens armados. Um deles, um mulato esquivo, com o aspeto desvalido de um gato molhado, saltou do veículo e avançou contra eles agitando na mão direita uma AK-47.
Gritava em português e nkumbi. Algumas frases chegaram, dilaceradas pelo vento, aos ouvidos de Jeremias:
Esta terra tem dono! Saiam! Saiam já!
O velho ergueu a mão direita, tentando conter o ímpeto dos jovens. Demasiado tarde. Um rapazote esgalgado, que só há poucos meses recebera esposa, e ao qual chamavam Zebra, lançou a azagaia (ehonga). A arma desenhou uma elipse elegantíssima no céu em pânico, e foi cravar-se, com uma pancada seca, a escassos centímetros das botas do mulato.
Houve um brevíssimo instante de silêncio. O próprio vento pareceu sossegar. Depois, o vigilante ergueu a arma e disparou.
À luz rigorosa do meio-dia teria sido um banho de sangue. Os seis homens estavam armados. Alguns dos pastores haviam passado pelo exército e também eles exibiam armas de fogo. Àquela hora, porém, com o vento chicoteando a escuridão, só duas balas encontraram carne. Zebra foi ligeiramente ferido num braço. O mulato numa perna. Ambas as partes retiraram, mas, na confusão, muitas vacas ficaram para trás.
Na noite seguinte um grupo de jovens pastores, liderados por Zebra, reentrou na fazenda. Voltaram com algum do gado extraviado, meia dúzia de vacas alheias, e um garoto de catorze anos, que, segundo Zebra, os perseguira a cavalo, gritando como um possesso.
Jeremias assustou-se. Roubar gado faz parte da tradição. Acontece muito. Naquele caso fora uma espécie de troca. O sequestro do rapaz, isso sim, podia trazer-lhes problemas. Mandou chamá-lo. Era um adolescente de olhos muito verdes, uma cabeleira indómita, apanhada num rabo-de-cavalo. Uma dessas figuras a que, em Angola, é costume chamar fronteiras perdidas, porque à luz do sol parecem brancos, e na penumbra se revelam, afinal, amulatados – de onde se conclui que, por vezes, as pessoas se conhecem melhor longe da luz. Encarou o velho com desprezo:
O meu avô vai-te matar!
Jeremias riu-se. Escreveu na areia:
Já morri uma vez. À segunda não custa tanto.
O adolescente gaguejou qualquer coisa, surpreso. Começou a chorar:
Chamo-me André Ruço, senhor, sou neto do General Ruço. Diga-lhes que não me façam mal. Deixem-me ir embora. Fiquem com as vacas, mas deixem-me ir embora.
O velho esforçou-se por convencer os jovens a libertarem André. Estes exigiam as vacas de volta e a garantia de que poderiam atravessar a fazenda em busca de melhores pastos. Estavam nisto, há três dias, quando Jeremias viu o passado agachar-se diante de si. Envelhecera, o que nem sempre acontece, há passados que atravessam séculos sem que o tempo os corrompa. Aquele não: mirrara ainda mais, ganhara rugas, e o cabelo que lhe restava já quase não tinha cor. A voz, essa, permanecia sólida e firme. Naquele momento, ao deparar-se com Monte, ao vê-lo erguer-se e ser empurrado e atirado para trás, ao vê-lo correr, perseguido pelos jovens pastores, Jeremias Carrasco voltou a lembrar-se dos diamantes de Orlando Pereira dos Santos.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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