Há
poucos meses, reli o Livro de Manuel, romance que o argentino
Julio Cortázar publicou, em Paris, em 1973. É um livro anárquico,
um mosaico de ideias, lembranças e fragmentos. Conta a história de
um casal de argentinos que, exilado na França, recorta notícias de
jornais sobre as ditaduras latino-americanas. Formam, assim, um álbum
de recordações históricas (o próprio livro), para que seu filho
Manuel, que está para nascer, conheça, no futuro, o mundo em que
foi concebido. A coragem intelectual transformou Julio Cortázar em
um dos mais importantes narradores do continente.
Seu
estranho romance me volta à mente quando começo a ler Escritos
em verbal de ave (Leya), o mais recente livro do poeta Manoel
(este com “O”, e não “U”) de Barros. Trata-se, também, de
um livro incomum, que ao ser aberto se transforma em um cartaz de
oito faces. E isso (inferno das associações!) me faz lembrar, por
insistência, de outro livro de Cortázar, Octaedro, coletânea
de contos lançada um ano depois de O livro de Manuel.
Vivo
assim, cercado de livros que enlaçam e abraçam outros livros,
formando serpentes de relatos. É nesse cenário disperso que me
surge o novo livro de Manoel de Barros. Ocorre-me ainda outra
coincidência: na semana passada, comentei aqui um conto do japonês
Kenzaburo Oe (1935) que se chama, justamente, “Os pássaros”. E
agora, uma semana depois, dessa vez nas palavras de um poeta, as aves
insistem em retornar. Só me resta acolhê-las.
O
livro-cartaz é um conjunto de 32 poemas sem título, cada um deles
com apenas três versos. Ou será um único poema de 96 versos? As
maneiras de ler são infinitas: cada um lê não só como quer, mas
como pode. Parto dos três primeiros versos: “Madrugada/ A voz
estava aberta/ para os passarinhos”. Como um médium, Manoel
incorpora os pássaros. Admite, até, que adota sua língua: “Fosse
bem:/ que as minhas palavras/ gorgeassem!”. O poeta é um veículo
que acolhe a voz alheia, a transforma e a transfere para novas
dimensões. Assim Manoel faz com as aves. Não só as imita: ele as
gagueja.
Essa
gagueira de passarinho dá um tom musical aos poemas. Poemas escritos
“em verbal de ave”? O poeta logo se transporta para o corpo de
outros bichos. Escreve: “Vi a metade/ da manhã/ no olho de um
sapo”. E ainda: “Vi uma lesma pregada/ na existência/ de uma
pedra”. A pedra (imóvel e tensa) lhe parece, talvez, mais viva que
a lesma (que rasteja e se alonga na vida). Resume Manoel, então, o
objetivo de sua poesia: “Visões descobrem/ descaminhos/ para as
palavras”.
Manoel,
poeta dos descaminhos. Poeta que parte sempre da inocência (o ponto
zero) das palavras. “Palavra abençoada/ pela inocência/ é ave.”
Não dá importância ao peso dos dicionários, com seu enxame de
significados. Prefere partir do dia do nascimento: escreve como uma
parteira, que dá a palavra à luz. Transporta-se para cada um dos
bichos de que trata. Isso é doloroso, mas inspirador: “Pedaço de
mosca/ no chão/ meu abandono!”. Divide-se não para se perder, mas
em busca do todo. Que, como sabemos (e ele também sabe), nunca se
captura.
O
poeta reconhece: “Abandono de um ser/ seria maior/ que o seu
deserto?”. O que Manoel quer dizer com isso? Releio os versos, e
outra vez, e mais uma, eles me espetam. Logo à frente, deparo com
algo que se parece com um carinho ou um aconchego: “Significar/
reduz novos sonhos/ para as palavras”. A significação – que os
dicionaristas tanto prezam e que sacia a fome dos verbetes – pode
matar. Pelo menos: corre o risco de reduzir (prender) o que solto
(como um pássaro) chegaria bem mais longe.
A
beleza – um poeta sabe disto – não tem face. Não importa saber
se ela existe ou não, mas se somos capazes de vê-la ou se a
cegueira nos impede. “Quem não vê/ o êxtase do chão/ é cego”,
Manoel nos adverte. E descreve, para nossa surpresa, a atitude
ambígua que isso lhe inspira: “Tenho um gosto/ elevado/ para o
chão”. Miudezas não o levam a rastejar, mas a voar. Também as
coisas mais elevadas (por exemplo, os profetas ou os anjos) nascem
desse rastejar. “Profetas nasciam/ de uma linguagem/ de rãs”,
diz Manoel. Insiste que encaremos o chão, que nos debrucemos sobre
ele. Que abandonemos a arrogância do olhar elevado, para fazer uma
espécie de elevação para baixo. Algo que, se nos engrandece, é
justamente porque nos achata. Vá se entender os poetas! E no
entanto, sem eles, que deserto...
Confessa
Manoel, por fim, o desejo de alçar voo, de ter asas, de ser um
pássaro. Escreve: “Queria que um passarinho/ escolhesse minha voz/
para seus cantos”. É ainda mais específico: “Queria dar ao
nada/ uma voz/ enlouquecida”. Suaves diabruras, que só um poeta
que inveja as crianças pode se permitir. Ainda constata, com
alegria, mas sem nenhum espanto: “Caracóis/ vegetam/ em minhas
palavras”. Tomado por seus bichos, sendo ele mesmo um bicho
solitário em um mundo de dentes vorazes, o poeta impõe sua voz de
passarinho. Suja, rasteira, lamacenta; mas com sobrevoos sinuosos e
livres, voz que se refresca na fonte farta das imagens.
Volto
a pensar em Cortázar, que, meio século antes, também teve seu
momento de Manoel. Também aceitou despregar-se, lançando-se na lama
fresca das manhãs, espreitando as palavras ali onde, antes delas,
alguma coisa (um latido, um mugido, um gorjeio) as anuncia. Manoel,
senhor dos bichos, não para segui-los ou ordená-los, ou mesmo
(devorador de carnes) para matá-los. Mas para perder-se em sua
desorientação, dela arrancar sentidos, dela fazer poesia. Tão
pequena e delicada como um pássaro.
Na
contraface do poema-cartaz, esbarro com um poema mais longo: “Uma
desbiografia”. Uma lição aos biógrafos, para que controlem sua
arrogância e certezas bem documentadas, e aceitem o inevitável
desconhecimento. “Bernardo morava de/ luxúria com as suas
palavras”, ele começa. Assim: escrever como quem ama. Escrever das
mesas de parto, onde a placenta ainda lateja. Sugere o poeta:
“Bernardo sempre nos parecia que/ morava nos inícios do mundo”.
Ali onde os poetas, sem nenhuma sinalização ou o agasalho de uma
língua, sozinhos e frágeis como pássaros, dedicam-se a cantar.
José
Castello, in Sábados inquietos
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