sábado, 3 de agosto de 2019

Lúcio, o enfeitiçado

Ergo, do vasto campo de poemas de Lúcio Cardoso – reunidos, enfim, por Ésio Macedo Ribeiro, em sua Poesia completa (Edusp) – três poemas que me ajudam a perfurar sua obra. Em vez de deslizar sobre a grande galáxia, em busca do Todo, sobre ela deslizo até encontrar esses três poemas, apenas três brechas, que, por perfuração, como prefiro quase sempre trabalhar, me levam ao coração do livro.
A travessia de sua espantosa poesia de 1.112 páginas não é simples. Sempre julguei que Lúcio Cardoso fosse, apenas, um poeta ocasional, ou tímido. Agora entendo que nunca o entendi. Nascido em Curvelo, Minas, em 1912, a ele nos referimos, em geral, como um homem antigo e atormentado. Ele foi isso também – mas não só. Aos 18 anos, já trabalhava com Augusto Frederico Schmidt. Lia Ibsen, Pirandello e Dostoiévski: formava-se. Aos 21, toma coragem e mostra a Schmidt seu primeiro romance, Maleita. Rabisca os primeiros versos.
Maleita dá início a uma obra densa e profunda, que tem seu apogeu em 1959, com a Crônica da casa assassinada. Bem antes, em 1941, momento crucial de sua formação, aproximara-se de Clarice Lispector. O derrame cerebral que paralisou parcialmente o lado direito de seu corpo, em 1962, o empurrou para a pintura. Aos 50 anos de idade, já não pode falar nem escrever. Morre em setembro de 1968. No mesmo dia em que o cineasta Luiz Carlos Lacerda apresenta, pela primeira vez, o curta-metragem O enfeitiçado, sobre sua vida e obra.
Recuo para mostrar como, em sua vida, a poesia esteve sempre latente. Talvez a poesia tenha sido seu segredo – e isso se confirma não só nos romances, mas em sua figura pessoal. Lúcio caminhou sobre o fio da navalha que separa o Bem do Mal. Sua formação religiosa acentuou essa imagem. Escritor fronteiriço, foi um homem enfeitiçado pela palavra, ou talvez até – o AVC, que o lançou no silêncio profundo seria uma prova – dela adoecido. O primeiro estudo sobre sua poesia, lançado pela Nankin Editorial em parceria com a Edusp, só apareceu em 2006, isto é, 38 anos após sua morte. Lúcio foi sempre lento e tardio.
Chego, enfim, aos três poemas que escolhi para minha perfuração. O primeiro deles, na página 391, se chama “A casa de solteiro”. É uma espécie de autorretrato de um homem que, com a alma trêmula de metafísica, a mente atravessada pela poesia e o corpo impulsionado pelo amor homossexual, viveu em limbo eterno, no qual o resultado da espera era, sempre, a própria espera. “A casa de solteiro é alta e de paredes de angústia”, Lúcio começa seu poema, pincelando os primeiros traços de um sinistro castelo, ou prisão. “Há quatro anjos sentados no teto solene e casto”, prossegue. Descreve as figuras do ideal que, ao mesmo tempo, o elevava e o oprimia.
Pois, além dos anjos, há o contraste do corpo: “Há flores quentes e de carne, flores mesmas,/ cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes/ quentes de sofrimento e decomposição”. Resume: “A casa do solteiro é o sol posto”. Ali, tudo falta. A opressão, diz mais à frente, procede da imobilidade, pois não há vertigem, espaço ou sossego. “Tudo sucede como se morrêssemos aos poucos”, diz. E mais: “A casa de solteiro flutua/ e é como uma vasta cortina de sangue e maldição”. Os elementos do feitiço que oprimem o poeta deságuam (sangram) nos versos. Não é o retrato de um rosto, mas de um cerco. Não é a expressão de uma voz, mas de uma mudez. Ao contrário do múltiplo Pessoa, o esquivo Lúcio escreve a poesia de um poeta que não chegou a ser.
O segundo poema, na página 583, é mínimo. Chama-se [O gênio é uma morte a cavalo], assim mesmo, entre colchetes. Trata-se de uma espécie fugaz de intervalo em que, em um relance, o poeta vislumbra a si mesmo. Já o primeiro verso iguala a dor à aventura: “O gênio é uma morte a cavalo”. Sim, o gênio cavalga, veloz, mas isso não lhe garante a nitidez do avanço, já que – como um cavalo louco que deixasse a pista e invadisse os bastidores – “cavalga fora das raias”. Há uma cegueira essencial, espécie de pagamento que o poeta (feito gênio) deve aceitar para escrever. “Não demora, nem distingue/ o seu; mas visto às vaias/ luz o que luz sob seu fascínio.” Terreno onde nem as pequenas árvores sobrevivem, e onde mesmo os minerais se mostram escassos, nele se guarda o vazio absoluto de sentido (deserto) que é, justamente, o que o move.
Na página 766 surge, enfim, o terceiro poema que me interessa: “Negação da poesia”. Letra de um poeta que não sustenta o próprio nome – e aqui entrevemos a figura difusa de Clarice, que também não aceitava a palavra “romancista”. Nele, Lú cio se despe daquilo que os outros veem como poesia e que ele mesmo vive não como poema – luz –, mas como dor – encobrimento.
Não sou poesia,/ que poesia não é,/ mas simplesmente está” , escreve, tentando separar-se não só (por medo) da beleza, mas (por insuportável) do que lhe parece uma praga. Um feitiço. “Não sou poesia,/ sou é ânsia”, o poeta diz. “Não faço versos/ grito apenas.” O vínculo entre poesia e existência é, para Lúcio Cardoso, um nó que é incapaz de desatar. Encruzilhada em que, se a vida alimenta o poema, este (com as palavras cheias de dentes) invade e estraçalha a vida. Antes, o poeta afirma ainda que “ninguém aprende poesia,/ pois poesia nasce,/ como fé para o irremediavelmente perdido”. Lúcido, ele reconhece o caráter aleatório da existência. Cheio de culpa (religiosa), Lúcio o toma como um castigo, e não como liberdade. Ao equiparar poesia e fé, ele não só relativiza sua crença espiritual, como ergue a poesia a um patamar – de vida ou morte – do qual nossos poetas “de imagens”, com seus malabarismos visuais e suas teses de gabinete, abdicaram completamente. Por coragem? Não: por medo do turbilhão que a palavra arrasta, só me resta pensar.
Nos três poemas, Lúcio Cardoso se afirma como poeta da entrega. A poesia como doação feita por alguém que para ela está despreparado; que não a suporta e, por isso, a entrega ao leitor. Como, à margem de uma estrada, o andarilho solitário encontra, enfim, uma companhia com quem dividir seu peso. Essa é sua hora, leitor.
José Castello, in Sábados inquietos

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