domingo, 4 de agosto de 2019

Fazenda Santa Elisa

Eu vou à Fazenda Santa Elisa pra rezar. Do meu jeito. Meu jeito de rezar é fechar a boca e parar de pensar a fim de ouvir o que a natureza fala. Para mim, rezar é ser todo sentidos: ver, ouvir, sentir os perfumes, sentir os “toques”. Alberto Caeiro escreveu um verso que é mais ou menos assim: “Por esse ruído da brisa nos meus ouvidos valeu a pena o universo ter sido criado...”. Os deuses já não suportam mais a nossa tagarelice tola e loquaz. Dizemos sempre as mesmas coisas.
Ouço Beethoven. Surpreendi-me alegremente. Eu nunca o havia percebido desse jeito. Beethoven sempre me parecia uma figura trágica regendo um mar em fúria. Mas agora ouço uma “escocesa”, três rondós e “Para Elisa” – carta a Elisa. É tudo brincadeira. Vejo Beethoven no centro de uma praça, tocando piano, e a criançada ao seu redor, brincando.
A psicoterapia gestáltica prescreve um exercício para nos tranquilizarmos. É assim. Pode ser feito em qualquer lugar. Onde quer que você esteja, diga para si mesmo: “Aqui e agora...”. Aí você completa a frase com algo que está sentindo. (Note: o que você está sentindo com o corpo, não com o que você está pensando com a cabeça.) O objetivo é precisamente este: livrar-se dos pensamentos. “Pensar é estar doente dos olhos”, disse Alberto Caeiro. Aqui e agora ouço o canto do bem-te-vi. Aqui e agora estou vendo as copas das árvores movidas pelo vento.
Aqui e agora estou sentindo um cheiro bom de pão saído do forno. Aqui e agora ouço o riso das crianças que brincam. Sempre “aqui e agora”. Porque é no aqui e no agora que a nossa vida está acontecendo.
Minha catedral favorita é feita por duas árvores gigantescas, pés de lixia. Devem ser muito velhas. Seus galhos se misturam e vão até o chão. Formam um vasto espaço vazio. Gosto de me encostar a um galho grosso – quando o abraço, apenas consigo tocar as pontas dos dedos. Ali não se ouve nada dos ruídos do mundo. Ao seu lado há um pé de seriguela. Comi dos seus frutos moleques faz um mês.
Os quero-queros e as corujinhas se agitam quando me aproximo. Começam a gritar. A corujinha desaparece na sua toca e os quero-queros vão dando o alarme: “Um homem vem aí, um homem vem aí...”
Ouço a gritaria das maritacas, centenas. As maritacas são como adolescentes. Não cantam, como os sabiás. Gritam. Todas ao mesmo tempo. Nenhuma escuta o que a outra está dizendo. E não importa pra onde voam, porque o que importa é o agito...
Entro por um caminho onde está a assombrosa árvore de quinze troncos. Não disse quinze galhos. Quinze troncos, todos eles saindo do chão.
Depois é um flamboyant, com sua imensa copa. Faz muito tempo, deitado sob um flamboyant, tive umas ideias esquisitas. Olhei para suas minúsculas folhinhas e pensei que talvez cada uma delas fosse um universo. Haverá tantos universos quanto folhas de flamboyant? Os físicos andam desconfiados. Ouvi dizer que já falam não em um big bang, mas em inúmeros big bangs acontecendo o tempo todo no espaço infinito. E seremos nós, o nosso universo, apenas uma folhinha de flamboyant desse flamboyant sem fim que é o universo? Quem sabe se naquela folhinha-universo há um homem deitado debaixo de um flamboyant ... Tudo é relativo.
Volto então para um encontro marcado com uma gigantesca jaqueira, com mais de trinta jacas. Algumas nasceram ao rés do chão. Alguns dizem que as árvores ouvem o que falamos. Espero que ouçam. Porque eu lhes faço em silêncio muitas declarações de amor…
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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