Eu
vou à Fazenda Santa Elisa pra rezar. Do meu jeito. Meu jeito de
rezar é fechar a boca e parar de pensar a fim de ouvir o que a
natureza fala. Para mim, rezar é ser todo sentidos: ver, ouvir,
sentir os perfumes, sentir os “toques”. Alberto Caeiro escreveu
um verso que é mais ou menos assim: “Por esse ruído da brisa nos
meus ouvidos valeu a pena o universo ter sido criado...”. Os deuses
já não suportam mais a nossa tagarelice tola e loquaz. Dizemos
sempre as mesmas coisas.
Ouço
Beethoven. Surpreendi-me alegremente. Eu nunca o havia percebido
desse jeito. Beethoven sempre me parecia uma figura trágica regendo
um mar em fúria. Mas agora ouço uma “escocesa”, três rondós e
“Para Elisa” – carta a Elisa. É tudo brincadeira. Vejo
Beethoven no centro de uma praça, tocando piano, e a criançada ao
seu redor, brincando.
A
psicoterapia gestáltica prescreve um exercício para nos
tranquilizarmos. É assim. Pode ser feito em qualquer lugar. Onde
quer que você esteja, diga para si mesmo: “Aqui e agora...”. Aí
você completa a frase com algo que está sentindo. (Note: o que você
está sentindo com o corpo, não com o que você está pensando com a
cabeça.) O objetivo é precisamente este: livrar-se dos pensamentos.
“Pensar é estar doente dos olhos”, disse Alberto Caeiro. Aqui e
agora ouço o canto do bem-te-vi. Aqui e agora estou vendo as copas
das árvores movidas pelo vento.
Aqui
e agora estou sentindo um cheiro bom de pão saído do forno. Aqui e
agora ouço o riso das crianças que brincam. Sempre “aqui e
agora”. Porque é no aqui e no agora que a nossa vida está
acontecendo.
Minha
catedral favorita é feita por duas árvores gigantescas, pés de
lixia. Devem ser muito velhas. Seus galhos se misturam e vão até o
chão. Formam um vasto espaço vazio. Gosto de me encostar a um galho
grosso – quando o abraço, apenas consigo tocar as pontas dos
dedos. Ali não se ouve nada dos ruídos do mundo. Ao seu lado há um
pé de seriguela. Comi dos seus frutos moleques faz um mês.
Os
quero-queros e as corujinhas se agitam quando me aproximo. Começam a
gritar. A corujinha desaparece na sua toca e os quero-queros vão
dando o alarme: “Um homem vem aí, um homem vem aí...”
Ouço
a gritaria das maritacas, centenas. As maritacas são como
adolescentes. Não cantam, como os sabiás. Gritam. Todas ao mesmo
tempo. Nenhuma escuta o que a outra está dizendo. E não importa pra
onde voam, porque o que importa é o agito...
Entro
por um caminho onde está a assombrosa árvore de quinze troncos. Não
disse quinze galhos. Quinze troncos, todos eles saindo do chão.
Depois
é um flamboyant, com sua imensa copa. Faz muito tempo,
deitado sob um flamboyant, tive umas ideias esquisitas. Olhei
para suas minúsculas folhinhas e pensei que talvez cada uma delas
fosse um universo. Haverá tantos universos quanto folhas de
flamboyant? Os físicos andam desconfiados. Ouvi dizer que já
falam não em um big bang, mas em inúmeros big bangs
acontecendo o tempo todo no espaço infinito. E seremos nós, o nosso
universo, apenas uma folhinha de flamboyant desse flamboyant sem fim
que é o universo? Quem sabe se naquela folhinha-universo há um
homem deitado debaixo de um flamboyant ... Tudo é relativo.
Volto
então para um encontro marcado com uma gigantesca jaqueira, com mais
de trinta jacas. Algumas nasceram ao rés do chão. Alguns dizem que
as árvores ouvem o que falamos. Espero que ouçam. Porque eu lhes
faço em silêncio muitas declarações de amor…
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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