domingo, 11 de agosto de 2019

Capítulo oito (Amigos de infância)

Mandei chamá-lo, caro Doutor, porque há assuntos que pedem o sossego de um lar civilizado.
O administrador Suacelência sublinha a palavra “mandei”. Ele é autoridade, dá ordens sobre nacionais e estrangeiros. Não há, aliás, outro estrangeiro sobre o qual possa fazer descer sentenças. O médico está sentado no cadeirão da sala, sem cruzar as pernas como se espera de quem exibe os devidos respeitos.
Pois mandei chamá-lo — repete enfaticamente o anfitrião — para conversarmos sobre a situação da Vila. E tinha que ser aqui, no conforto da minha casa.
O conforto é regrado, mas o cenário é o mesmo das outras casas da administração de todo o país: um sofá de napa castanho, com paninhos bordados na cabeceira, um pesado armário de madeira escura com vidros e espelhos. Embalagens vazias de whisky decoram as prateleiras. Suacelência parece seguir o olhar do visitante, pois, nesse exacto momento, dá ordens:
Esposinha, traga um whisky aqui para o nosso doutor.
Não vale a pena, não bebo.
Eu não bebo outra coisa, para mim whisky é a única bebida que existe.
Dona Esposinha traz uma garrafa numa bandeja de plástico preta com incrustações a imitar madrepérola. Depois de servir um copo, a mulher ensaia uma ligeira genuflexão e retira-se sibilando um prolongado “dá licença”.
Deixe a garrafa que a noite ainda vai baixa.
O Administrador estala a língua ruidosamente a aprovar a qualidade da bebida. Os pobres podem não gostar dos ricos, mas o que eles realmente odeiam são aqueles que são ainda mais pobres. A urgência de demarcação desses outros, os ordinários cacimbenses, está patente no mínimo gesto e palavra de Suacelência.
Essa doença misteriosa que se espalhou por aqui: o senhor já tomou as providências?
Eu acho que se trata de meningite.
É uma doença, digamos, que encomendável?
Não entendo.
Pergunto se alguém… digamos, um inimigo político, poderia ter encomendado.
É uma doença que ocorre sobretudo nas pessoas que se concentram em recintos fechados. É por isso que os soldados são mais atingidos…
As pessoas pensam que é um mau-olhado.
As pessoas não pensam…
Suacelência adivinha a retórica do europeu. Ergue o braço autoritário, mas abre mão à paciência para que o estrangeiro entenda.
Pode ser doença. Mas doença que provoca convulsões, aqui, em Cacimba, passa a ser outra coisa.
Os rumores tinham-se espalhado como fogo em capinzal. Nunca se tinha visto coisa igual: homens adultos vagueando, febris, sujos e maltrapilhos. E era como o Administrador explicava: as pessoas, em Cacimba, podem ser pobres mas andam limpas e cuidadas. Apenas os loucos andam sujos.
Os maus espíritos vestem-nos com o lixo deles. E eu mesmo, que não sou massa popular, eu acredito que há… como direi… uma maldição do cemitério.
Como assim, uma maldição?
Viajar é muito bom, mas as pessoas deviam morrer no sítio onde nasceram.
Não vejo relação entre uma coisa e outra.
Veja o cemitério dos alemães. São falecidos confundidos, não reconhecem o lugar onde suspiraram.
O mundo mudou, as pessoas hoje vivem e morrem longe dos lugares onde nasceram.
Não sei, o senhor sabe mais do mundo. Voltemos à epidemia, Doutor. Eu quero é resultados, quero anunciar o controlo da situação.
Mandei vir vacinas e antibióticos da cidade. É preciso iniciar uma campanha de limpeza e isolamento. Noutras palavras, é preciso o senhor mandar fechar o quartel.
Não posso.
Por uns tempos. O quartel deve ser o foco desta epidemia.
Mas eu não mando nos militares.
Falo como médico, é preciso arejar e desinfectar o quartel.
O anfitrião levanta-se e chama pela mulher. Reconhecer que os seus poderes são limitados o tornou tenso, precisa de se reabastecer de álcool. O médico faz tenção de se erguer e reencher o copo para o dono da casa, mas este ordena que se detenha. A esposa estava certamente acordada e cumpriria a sua doméstica obrigação.
Parece-me que Dona Esposinha já adormeceu…
Ela acorda, ela acorda — e o homem grita, num tom marcial: — Esposinha!
Silêncio. A casa dorme. Suacelência apoia-se, esforçadamente, nos joelhos e vai gemendo enquanto se aproxima da mesa. Serve-se generosamente e, mais generosamente ainda, emborca, de uma assentada, um copo inteiro. Volta a encher o copo, ao mesmo tempo que desaperta o cinto e esfrega a barriga deixada a descoberto. Um poderoso arroto mistura-se com a voz e o administrador é forçado a repetir a fala: — Sabia que eu posso mandá-lo prender? — Sei. — Fica preso e ninguém sabe de nada. Aqui em Vila Cacimba é muito longe, não há embaixadas consulados, jornalistas … O português baixa o rosto, em silêncio. A ameaça é tão real que ele não encontra resposta. Suacelência continua afagando a pança e retoma o discurso em tom mais suave:
O que é que o faz tanto ir a casa de Bartolomeu Sozinho?
Ele está muito doente.
Há dezenas de pessoas muito doentes, com toda a prioridade política que eu já lhe expliquei. Ou será que é outra pessoa que o chama àquela casa?
Por amor de Deus …
Fique sabendo de uma coisa: o senhor é Doutor, com o devido respeito, mas eu mando em si e não vou permitir desobediências. Ficamos entendidos?
Entendi.
De novo, um arroto faz estremecer um silêncio que se pretendia solene. Suacelência cerra os olhos, parece atacado por uma súbita melancolia.
A minha vida não é muito feliz, o senhor sabe?
O dono da casa inicia a fase queixosa: ele só podia embebedar-se em privado. Porque em estado alcoólico ele dizia a verdade, toda a verdade e apenas a verdade.
Sabe o que acontece no final? Acabo dizendo mal do meu partido.
Mais um trago, mais uma confissão. Olhos postos no copo, vai apalpando o assento da cadeira:
Eu gosto de vocês, portugueses, até porque foram portugueses que me salvaram.
Salvaram como?
Do naufrágio. Foram pescadores portugueses que me tiraram da água. Bartolomeu não lhe contou?
Não.
Nunca lhe falou do Infante D. Henrique?
Sim, já me contou mais que uma vez.
Mas aposto que não lhe disse a verdade. Não lhe disse que estávamos juntos eu e ele. Eu conto-lhe, agora, a verdadeira verdade.
Suacelência e Bartolomeu eram amigos de infância. Cresceram juntos na aldeia de Murebwé, nas imediações de Porto Amélia. No dia em que vieram buscar apoio para reparar o Infante D. Henrique, eles embarcaram juntos no pequeno bote. Na viagem até ao navio, ambos cuidaram de não voltar o rosto para trás. Eles queriam que o cais ficasse sem despedida. Para que fossem livres para nunca mais voltarem.
Foram os dois adotados pelo comandante do navio. Mas, logo na viagem para a capital, Suacelência foi atacado por vômitos, e de tal modo se sentiu indisposto que foi deixado na capital. Quando o navio abandonou o porto de Lourenço Marques rumo a Lisboa, Suacelência ficou em terra, acenando com o mesmo lenço que o iria acompanhar por toda a vida.
O jovem Suacelência demorou-se na capital e, quando regressou à sua terra natal, trouxe consigo uma versão heróica da sua passagem pelo navio. Que ele tinha sido expulso do transatlântico por razões patrióticas. Ele, Suacelência, filho e neto da linhagem Susiweia, tinha capitaneado uma revolta à moda do assalto do Santa Maria, por Henrique Galvão. A revolta abortara — em parte pela conivência de Bartolomeu para com os portugueses — e Suacelência tinha sido lançado ao mar. Salvara-se graças à ajuda de uns pescadores que o trouxeram para a praia.
Meses depois, quando voltou de Lisboa, Bartolomeu Sozinho já estava classificado como mentiroso, traidor, colaborador. O que quer que ele dissesse sobre o passado de Suacelência seria entendido como uma intencional falsidade.
Tudo mentiras desse decorativo do Bartolomeu…
A bebida escorre pelo copo, pinga na alcatifa, mas Suacelência, voz pastosa, está demasiado ocupado no relato do passado. A narrativa volta ao início, enroladas que estavam palavras e ideias:
Foram pescadores portugueses que me salvaram…
Os pescadores eram portugueses. Todavia, já tinham sido ingleses, italianos, franceses e russos. A nacionalidade mudava consoante as conveniências do relato e a identidade do interlocutor.
Nós aqui gostamos muito dos portugueses.
Ainda bem.
E fique sabendo: eu gosto de si, meu Doutor.
Agradeço-lhe. Eu também gosto de si.
Você é diferente do padre daqui da Vila.
E porquê?
Os padres, eu conheci-os muito bem, tratam a alma como uma árvore: podam-na. O senhor, não. O senhor trata, digamos, do corpo espiritual.
Despedem-se. O Administrador abraça o visitante e o amplexo demora mais do que Sidónio desejaria. Por um instante, ainda nos braços do outro, estranhos pensamentos o assaltam. Teria Suacelência adormecido, no morno amparo do seu corpo? Ou, pior, estaria retirando libidinosos sabores daquele contato?
O anfitrião, por fim, se separa, amparando as mãos nos braços do interlocutor e pergunta:
O que é que eu ia a dizer?
Não sei — responde o médico, desviando-se do hálito empestado do Administrador.
Ah, é verdade. Não esqueça do remédio, Doutor.
Do remédio?
Para a transpiração, não se lembra?
Mia Couto, in Venenos de Deus, Remédios do Diabo

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