terça-feira, 6 de agosto de 2019

As rãs estão pedindo um rei

Senhoras
Senhores
Camaradas

As rãs estão pedindo um rei. Fatigaram-se depressa da liberdade precária ultimamente conseguida e ora suspiram, ora se esgoelam por um governo rijo que estabeleça ordem na lagoa.
Liberdade bem precária, isto facilmente se percebe: existe nas folhas, nos meetings, nas conversas das ruas, mas ameaçada a qualquer momento por um decreto 8063 ou por outra lei estrangeira, polaca ou malaia, coleção de artigos e parágrafos que vêm da sombra e nos batem na cabeça, nos atordoam, duros como cacetes. Não estão os paraenses isentos de uma constituiçãozinha arranjada pelo Sr. Barata, e amanhã podem os mineiros aguentar, em resumo outorgado, as ideias e a sintaxe do Sr. Benedito Valadares. Nada nos preserva de incômodas surpresas que se alinham no papel ou declamam no rádio.
Contudo muito nos disciplinamos — e hoje somos induzidos a julgar conquista valiosa o direito que as gazetas alcançaram de agredir sujeitos sérios, dizer deles, com justiça ou sem justiça, cobras e lagartos. Consideramos isso, bem erradamente, vantagem nossa e nem investigamos a razão de certos ataques. Saímos do escuro e vivemos a deslumbrar-nos à toa. Afeitos à obediência, esperamos na fila que o ascensorista nos abra a porta do elevador, ríspido e lento, comprima um botão, e se o condutor nos cobra a passagem duas vezes, largamos o níquel e nem piamos: na liquidação do Estado Novo, ascensoristas, condutores e passageiros ainda não conseguimos corrigir-nos.
Mas é evidente que existem por aí certas licenças, pedaços de licenças, arrancados a fórceps em partos dolorosos. Será razoável imaginarmos que a oposição, pelo menos parte essencial da oposição, tenciona, empoleirando-se, olhar com simpatia as nossas manifestações em comícios, artigos, faixas e cartazes? Não, não é razoável supormos isso. Há indicações de que ela não tem semelhante desígnio.
As rãs estão pedindo um rei. Praticamente é um rei que elas desejam. De outra forma, não se compreenderia esse horror à Constituinte, que há meses, se não nos enganamos, reclamavam com vigor e celeuma terrível: quase deitaram o mundo abaixo exibindo juízos de instituições sabidas e importantes. Por que torceram caminho? Ou muito nos equivocamos ou devemos isto ao fato de outras rãs, pequenas, entrarem a coaxar a mesma exigência a que elas se aferravam. E aí notaremos que uma palavra, conforme o ambiente onde é empregada, pode traduzir conceitos diversos. A Constituinte defendida por proprietários gordos e de boa figura diverge da Constituinte em que operários magros e canhestros ousam entender representar-se.
Neste país fervilham os democratas. Quem há por aí capaz de afirmar que não é democrata? Já tivemos até uma democracia autoritária. A imprensa era então bastante comedida, o que não significa, de maneira nenhuma, redução nos bons negócios. Agora se descomediu. Findou a censura — e toda a gente respirou com alívio.
Pensam que realmente ela findou? Não, senhores, a censura não findou. E, para demonstrar isto, vou citar um caso há dias publicado, mas que passou despercebido, por não ser conveniente aos pretensos mentores da opinião pública nenhum comentário a ele. O poeta Carlos Drummond de Andrade teve um trecho de colaboração amputado por um desses jornais que ofendem o major Amílcar Dutra de Meneses. Será possível julgarmos que noticiaristas e repórteres hajam pretendido emendar a literatura de Carlos Drummond de Andrade? Não. Carlos Drummond de Andrade é um dos maiores escritores nacionais, suponho que nunca houve melhor. Todas as pessoas que usam tinta sabem isto e nenhuma cai na tolice de mexer-lhe numa vírgula ou numa preposição. Por que se cortaram, pois, alguns períodos em crônica de Carlos Drummond de Andrade? Apenas porque havia neles ideias contrárias às ideias ou aos interesses de uma empresa jornalística. Essas ideias condenadas não eram exóticas, relativas à foice e ao martelo, dois instrumentos nocivos que devemos eliminar com urgência: eram ideias sãs, nada prejudiciais a Deus, à pátria, à família, palavras dificilmente utilizáveis hoje contra nós.
Consequência: não existe na Rússia liberdade de pensamento, e o comunismo é antibrasileiro. Os russos não pensam e nenhum de nós é brasileiro. Pensamento há na cabeça do indivíduo que surrupiou várias linhas de Carlos Drummond de Andrade; e cavalheiros monopolizadores do patriotismo falam em nome do Brasil excluindo sem cerimônia verdadeiras multidões.
Seria demasiado esperarmos rigor e lógica de certos espíritos, mas na verdade essas trapalhices nos assustam. Depois de longos anos de silêncio e morte, quando enxergamos em toda a parte uma ressurreição, há quem deseje afastar-nos do resto do mundo e se expresse em voz alta, com ingenuidade pasmosa: “Estamos fora de tudo isso.” Nenhuma consulta à nação, apenas o lugar-comum badalado por muito reacionário que agora se disfarça, muda a camisa e a linguagem. Nada de Constituinte. Um chefe apenas. Um chefe que nos faça recuar séculos.
As rãs estão pedindo um rei.*
Graciliano Ramos, in Garranchos
 
*Referência a uma fábula de Esopo. Como as rãs se encontravam insatisfeitas por não ter um líder, pediram que Júpiter lhes destinasse um rei. O deus, rindo do pedido, jogou um toco de madeira na lagoa em que esses pequenos anfíbios se encontravam. De início, as rãs ficaram apavoradas com o estrondo causado pela queda do objeto, passando a reverenciar o pedaço de madeira como o suposto rei ofertado. Porém, tão logo perceberam que ele não passava de algo inerte, tornaram a fazer o pedido ao deus, manifestando o mesmo descontentamento inicial. Irritado com a reincidência da súplica, Júpiter enviou uma cegonha que passou a devorar as rãs uma por uma. Estas passaram a se lastimar por terem caído nas mãos de um tirano. Em resposta, Júpiter lhes disse: “Andai para loucas, já que vos não contentastes do primeiro Rei, sofrei esse, que tanto me pedistes” (ESOPO. Fábulas . São Paulo: Cultura, 1943, p. 75).

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