Minhas
senhoras
Meus
senhores
Preciso
revelar a mim mesmo a razão da minha estada aqui. Se conseguir isto,
levarei talvez ao espírito dos outros a certeza de que não nos
achamos diante de um absurdo. Realmente nos achamos. Confessemos,
porém, que um absurdo examinado com atenção deixa muitas vezes de
ser absurdo. Despropósitos vários se tornaram fatos normais.
Tentemos,
pois, anular, o contrassenso que representa a minha vinda a esta
casa, em semelhante situação.
Noticiaram-me
que os indivíduos anualmente chamados para desempenhar este papel a
mim atribuído foram em regra cidadãos mortos. Esse uso me parece
cheio de sabedoria. Em primeiro lugar nenhum deles poderia eximir-se
do convite. Em segundo lugar havia um discurso de menos: nenhuma voz
de além-túmulo viria exibir aos circunstantes possíveis
discrepâncias. E afinal, vantagem preponderante: a uma figura
desaparecida facilmente concedemos valor simbólico. Não entra em
concorrência conosco, já nenhum mal é capaz de fazer. Os seus
defeitos se atenuam, chegam a sumir-se com o tempo; as boas
qualidades crescem, e em falta disto entretemo-nos a pendurar nela as
virtudes que desejaríamos possuir.
Temeridade,
presumo, substituir essa personagem cômoda e inerte por um ser vivo,
natural veículo de erros e paixões. As nossas falhas são
evidentes, a custo se dissimulariam as nossas fraquezas, limitações,
incongruências. Movemo-nos entre quedas, a desgraçada viagem do
ventre materno à sepultura é feita de pequenos avanços, recuos,
suspensões.
Por
que se fez uma escolha em que se ressalta a perda? Que irá
contrabalançar tantas inconveniências? Houve um salto — e
pergunto a mim mesmo as consequências dele. Aceitavam ontem a
imobilidade; hoje preferem o movimento. Que determinou isso? A
quietude nos leva a contemplar, talvez a admirar passivamente; a
agitação nos força a pesquisar, sondar, criticar. Uma concepção
estática e uma concepção dinâmica.
Se
a primeira vencia e prevalece a segunda, admitiremos que a juventude,
pelo menos uma parte dela aqui presente, em vez de aumentar o
prestígio de venerandas múmias, resolveu improvisar uma espécie de
soldado desconhecido, apenas diferente do outro porque ainda não se
enterrou. Decidiu largar a coisa distante e abrir os olhos à
realidade próxima; abandonou a história e as antologias, quis ver
de perto um homem da rua, vulgar, sujeito que neste momento segura
uma folha de papel e amanhã poderá viver na cadeia ou no hospício.
Sendo
assim, os protestos e agradecimentos e as tiradas de modéstia falsa
tornam-se inúteis, pois significo uma partícula na multidão, a ela
regressarei finda esta cerimônia, a que não me acomodo bem.
Evidentemente não lhes direi frases difíceis e pomposas, dessas que
analisaram no primeiro ano e graças a Deus esqueceram. Sinto-me como
se viajasse pingente — e utilizo a linguagem dos pingentes, áspera,
sem adorno. Impossível manifestar-me de outro modo. E o pior é não
me surgirem ideias serenas que venham ressarcir a deficiência da
forma.
Certo
não me ocorreu oferecer aos moços conselhos enfadonhos: cabelos
brancos e rugas fraca autoridade me proporcionariam para tais
rabugices. Devo então felicitá-los, fazer-lhes zumbaias, cantar
loas, afirmar que entrarão na luta com boas armas e se arranjarão
todos em lugares magníficos? Essas adivinhações seriam
naturalmente recebidas com agrado, mas ignoro que surpresa o futuro
nos reserva, não sou profeta. E, para falar com franqueza, estou
longe de agourar aos meus amigos a paz, o cargo bem remunerado, o
sono tranquilo, isento de sonhos. Nada ganharíamos com isso. Não
espero que sejam felizes: espero que sejam úteis.
Quando
nos retirarmos desta sala, quase todos nos resignaremos a entrar numa
fila de ônibus, aguardaremos com paciência a vez de nos
sacolejarmos, aos trambolhões. E a certeza de que outros indivíduos,
insignificante minoria, cochilam em automóveis, rolando sobre
pneumáticos silenciosos, não nos trará nenhum conforto.
Receio
que estas palavras soem mal em numerosos ouvidos. A culpa é dos
rapazes que, insensíveis às nossas glórias, voltaram as costas ao
passado, quiseram saber a opinião de um transeunte. Dirijo-me a eles
de coração aberto. Não, meus caros amigos, não lhes desejo
felicidade. Seria o mesmo que desejar-lhes a morte.
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Discurso proferido pelo escritor
alagoano em dezembro de 1946, do Instituto Lafayette, Rio de Janeiro)
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