segunda-feira, 12 de agosto de 2019

A fonte


Que por seis mil anos – e ninguém sabe quantos milhões de eras antes – as grandes baleias tenham estado a soprar pelos oceanos, borrifando e mistificando os jardins profundos, como tantos regadores e vaporizadores; e que, por séculos, milhares de caçadores estivessem próximos da fonte da baleia, assistindo aos borrifos e esguichos – que tudo isso tenha ocorrido e que, até este abençoado momento (uma hora, quinze minutos e quinze segundos da tarde, do dia dezesseis de dezembro de 1850 d.C.), ainda seja um problema saber se os sopros são, afinal de contas, de água mesmo ou nada além de vapor – isto é sem dúvida algo notável.
Ocupemo-nos, portanto, deste assunto, a par com eventuais aspectos interessantes. Todos sabem que com a habilidade especial de suas guelras as raças que têm barbatanas, em geral, respiram o ar que está combinado com o elemento no qual nadam; desse modo, um arenque ou um bacalhau poderiam viver um século, sem nunca ter que pôr a cabeça para fora da água. Mas devido a sua estrutura interna característica, dotada de pulmões como os de ser humano, a baleia só pode viver se inalar o ar livre a céu aberto. Daí a necessidade de fazer visitas periódicas ao mundo exterior. Mas não pode de forma alguma respirar pela boca, pois na sua posição costumeira a boca do Cachalote fica submersa a pelo menos oito pés da superfície; e, além disso, a sua traqueia não tem ligação com a boca. Não, ele só respira pelo espiráculo; e este fica no topo de sua cabeça.
Se digo que para todas as criaturas a respiração é a única função indispensável à vida, visto que retiram do ar um certo elemento que é, em seguida, colocado em contato com o sangue e que comunica ao sangue o seu princípio vivificante, não creio incorrer em erro; embora possa estar usando alguns termos científicos supérfluos. Isso posto, segue-se que, se todo o sangue de um homem pudesse ser arejado com uma só respiração, ele poderia fechar as suas narinas e não respirar por algum tempo. Ou seja, ele viveria sem respirar. Por anômalo que pareça, tal é precisamente o caso da baleia, que vive sistematicamente, de tempos em tempos, uma hora ou mais (quando está no fundo), sem inalar nada, nem mesmo uma partícula de ar, pois, lembre-se, ela não tem guelras. Como assim? Entre as costelas, e de cada lado da coluna, ela tem um incrível labirinto de Creta enredado de vasos finos, aletriados, que quando ela submerge se expandem por completo com o sangue oxigenado. De tal modo que por uma hora ou mais, a mil braças de profundidade, ela leva consigo um abastecimento extra de vitalidade, como um camelo que atravessa um deserto sem água carrega um abastecimento extra de líquido em seus quatro estômagos suplementares, para usar no futuro. A existência anatômica desse labirinto é indiscutível; e essa suposição é razoável e verdadeira, e me parece ainda mais convincente quando penso na obstinação, de outro modo inexplicável, com que o Leviatã solta os jatos de água, como os pescadores dizem. Isso é o que quero dizer. Se não for incomodado, ao surgir na superfície, o Cachalote continua ali por algum tempo, como faz em todas as suas emersões sem incômodos. Suponhamos que fique durante onze minutos e solte setenta jatos, ou seja, respire setenta vezes; então, quando subir novamente, terá a certeza de ter as suas setenta respirações outra vez, no mesmo espaço de tempo. Ora, se for incomodado depois de respirar umas poucas vezes e tiver que mergulhar, ficará subindo sempre de novo para conseguir a quantidade de ar de que necessita. E enquanto não completar as setenta respirações permanece lá embaixo. No entanto, observe que em sujeitos diferentes esses números são diferentes, mas em qualquer um deles é constante. Ora, por que uma baleia deveria insistir em soltar os jatos na superfície, se não fosse para reabastecer o seu reservatório de ar antes de descer de vez? É muito óbvio, então, que a necessidade de subir da baleia a expõe aos riscos fatais da caçada. Pois nem com um gancho e nem com uma rede se poderia capturar esse imenso Leviatã quando nada a mil braças sob a luz do sol. Não é tanto a tua habilidade, pois, ó, caçador, mas as grandes necessidades vitais que te garantem a vitória!
No homem, a respiração é incessante – uma respiração servindo apenas para duas ou três pulsações; de modo que para qualquer outra tarefa que tenha de fazer, acordado ou dormindo, ele precisa respirar, senão morre. Mas o Cachalote apenas respira um sétimo, ou um domingo, de todo o seu tempo.
Disse que a baleia só respira por meio do seu espiráculo, e se pudesse dizer que, na verdade, os seus sopros são misturados com água, eu opinaria que teríamos a explicação para o fato de que o seu olfato parece obliterado; pois a única coisa nela que corresponde a um nariz é o próprio espiráculo; pois, estando entupida com dois elementos, não se poderia esperar que tivesse a capacidade de sentir cheiro. Mas devido ao mistério do seu sopro – quanto a ser água ou vapor – não se pode chegar a uma certeza absoluta quanto ao principal. Não obstante, é certo que o Cachalote não tem órgãos olfativos. Mas para que precisaria deles? Não há rosas, nem violetas, nem águas-de-colônia no mar.
Além do mais, como a sua traqueia só se abre para o tubo do canal de jato, e como esse canal comprido – semelhante ao grande canal Erie – tem uma espécie de comporta (que se abre e se fecha) para reter o ar dentro ou expelir a água para fora, a baleia não tem voz; a menos que você a insulte dizendo que ela murmura de um modo tão estranho que é como se falasse pelo nariz. Mas, novamente, o que a baleia teria a dizer? Raras vezes conheci um ser profundo que tivesse algo a dizer para este mundo, exceto quando forçado a balbuciar alguma coisa para ganhar a vida. Oh! Que bem-aventurança que o mundo seja um ouvinte tão excepcional!
Ora, o canal de esguichar do Cachalote, destinado essencialmente ao transporte do ar, estende-se por vários pés, na posição horizontal, logo abaixo da superfície na parte superior da cabeça, e um pouco para o lado; esse canal estranho é muito parecido com um cano de gás no subsolo de uma cidade, ao longo de uma rua. Mas volta a questão de saber se o cano de gás é também um cano de água; em outras palavras, se o sopro do Cachalote é apenas o vapor da respiração exalada, ou se essa exalação é misturada com a água da boca, e descarregada pelo espiráculo. É certo que a boca se comunica de maneira indireta com o canal de esguicho; mas não se pode provar que isso é feito com o propósito de soltar água pelo espiráculo. Pois a maior necessidade de agir assim seria quando, ao se alimentar, a baleia acidentalmente ingerisse água. Mas a alimentação do Cachalote fica muito abaixo da superfície e ali ele não poderia esguichar mesmo se quisesse. Além disso, se você olhar de perto, e marcar com o relógio, verá que quando não está sendo incomodado, há uma correspondência invariável entre a periodicidade dos jatos e a da respiração.
Mas por que aborrecer alguém com tantos argumentos sobre o assunto? Fale claro! Você o viu soprar; pois conte como é o seu sopro: não sabe a diferença entre a água e o ar? Meu caro senhor, neste mundo não é tão fácil estabelecer nada sobre as coisas mais simples. Sempre achei que essas coisas simples eram as mais emaranhadas. E, quanto a esse sopro de baleia, você pode estar em pé, dentro dele, e ainda assim não saber com certeza do que se trata.
A parte central do sopro oculta-se na neblina nívea e borbulhante que o envolve; mas não há como alguém dizer com certeza se a água cai dali, pois, quando se está perto de uma baleia a ponto de ver bem seu sopro, ela se encontra sempre em prodigiosa agitação, e a água jorrando à sua volta. Se nessas ocasiões você achar que viu, de fato, algumas gotas de umidade no sopro, como saber se não são apenas condensações do seu vapor, ou como saber que não são as mesmas gotas alojadas superficialmente na fissura do espiráculo, escareada no topo da cabeça da baleia? Pois mesmo nadando tranquila no oceano ao meio-dia, numa calmaria, com a sua elevada corcova seca como a de um dromedário no deserto, sempre leva consigo uma pequena vasilha de água na cabeça, como se vê por vezes numa rocha, sob um sol ardente, uma cavidade cheia de água da chuva.
Também não é prudente para um caçador demonstrar muita curiosidade em relação à natureza do sopro da baleia. Não convém olhar lá dentro, colocar o rosto ali. Não se pode ir com o jarro a essa fonte, enchê-lo e ir embora. Pois quando se mantém um contato, mesmo superficial, com as partículas externas e vaporosas do jato, o que ocorre com frequência, a pele arde com febre, devido à acidez daquilo. Conheço uma pessoa que ao ter um contato mais estreito com o sopro, não sei se com um objetivo científico ou não, teve a pele do rosto e do braço descascada. Por isso, entre os baleeiros, o sopro é considerado venenoso: tentam evitá-lo. Mais uma coisa: ouvi falar, e não duvido, que se o jato é esguichado nos olhos você pode ficar cego. A coisa mais sábia que o investigador tem a fazer, ao que me parece, é deixar esse sopro mortal em paz.
Contudo, podemos fazer hipóteses, mesmo se não pudermos prová-las e nem demonstrá-las. A minha hipótese é a seguinte: o sopro é apenas névoa. Além de outros motivos, cheguei a essa conclusão estimulado por considerações referentes à enorme dignidade e à sublimidade do Cachalote; não o considero um ser comum ou insípido, visto que é um fato irrefutável ele nunca ser encontrado em águas pouco profundas ou próximas do litoral; todas as outras baleias o são às vezes. Ele é ponderoso e profundo. Estou convencido de que da cabeça de todos os seres ponderosos e profundos como Platão, Pirro, o Diabo, Júpiter, Dante, e assim por diante, sempre sai um certo vapor semivisível, quando estão mergulhados em pensamentos profundos. Quando escrevia um pequeno tratado sobre a eternidade, tive a curiosidade de colocar um espelho à minha frente; e logo vi refletida ali uma ondulação curiosa e coleante no ar sobre a minha cabeça. A umidade invariável do meu cabelo, quando mergulhado em pensamentos profundos, depois de seis xícaras de chá quente em meu sótão de telhas finas, num meio-dia de agosto, parece um argumento adicional para a minha suposição anterior.
E como cresce com nobreza em nosso conceito o poderoso monstro nebuloso, contemplado a navegar solene as águas calmas do mar tropical; sua cabeça imensa e suave, coberta por um dossel de vapor, engendrado por suas contemplações incomunicáveis, e esse vapor – como se vê por vezes – glorificado por um arco-íris, como se o próprio céu houvesse posto o seu selo sobre os seus pensamentos. Pois, como se sabe, os arco-íris não visitam o ar puro; apenas se irradiam no vapor. Assim, através da densa névoa das dúvidas obscuras do meu espírito, vez ou outra surgem intuições divinas, iluminando-me a neblina com um raio celestial. Agradeço a Deus por isso; pois todos têm dúvidas; muitos negam; mas entre dúvidas e negações, poucos têm ainda intuições. Dúvidas sobre todas as coisas terrenas e intuições de algumas coisas celestiais; essa combinação não faz de ninguém nem crente nem infiel, mas um homem que a ambas estima com os mesmos olhos.
Herman Melville, in Moby Dick

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