O velhote Zé Vitinho era taciturno, mas
bondoso. Cara fechada. Vivia pensando, lia, lia. A mulher dele, dona
Santa, era santa mesmo. Quietinha, sempre de terço, a toda hora
chamando: Zé Vitinho! Olha o beija-flor ali! Zé Vitinho levantava
os olhos do livro e balbuciava: já vi, Santa, já vi. Um dia ele
disse: Santa, li uns mil e duzentos livros e tô na mesma. Ela
respondeu: ah, é? E isso é ruim, Zé Vitinho? Muito ruim mesmo,
minha santa. Só disse isso e começou a dar uns saltos patéticos,
bastante insólitos. Santa começou a rir. Ele continuou a saltar.
Depois parou e começou a rir também. No dia seguinte sumiu. A
vizinhança ficou apatetada. Sumiu como? E dona Santa contava a
estorinha de novo! Já falei gente, ele disse que leu mil e duzentos
livros e tava na mesma e depois pulou e depois riu, e de noite comeu
bolinho de arroz e mandioca frita, depois dormiu e de manhã não
tava mais lá. Lá onde? Na cama, gente. Alguns viram Zé Vitinho
peladão subindo uma colina. Que colina, menino? Uai, aquela colina
logo ali. E lá ia todo mundo na colina logo ali. Outro viu Zé
Vitinho mijando atrás do ipê-amarelo. Que ipê-amarelo, Janjão?
Credo, gente, aquele ipê-amarelo ali. E lá ia todo mundo pro ipê.
Tinha gente que até urinava no ipê pra vê se aparecia Zé Vitinho.
A filha da Maricota diz que viu Zé Vitinho apontando pra ela e
gargalhando e dizendo assim: cê também vai ficá velha, Marisinha,
e nojenta e pelada como eu, e assim sem dente! E Mansinha contou que
nesse pedaço ele arrancou a dentadura da boca e jogou no bueiro. Que
bueiro, Marisinha? Aquele bueiro ali, perto do toco negro. Que toco
negro, menina? Uai, o toco que pegou fogo. Quando? Pois
trasanteontem, gente! E todo mundo corria pra ver o toco negro. E
nada do Zé Vitinho. E a dentadura, acharam? Era de madeira, dona
Santa aclarava, ele dizia que era igualzinha a de George Washington,
de madeira clarinha. De madeira, é? Pois nem parecia, né gente? É
que ele nunca ria. Ah! Passaram-se muitos meses. Alguém viu um
velhote bêbado sentado no penhasco. Que penhasco, Etelvina? Pois o
único penhasco que existe aqui, aquele lá! E foram todos
madrugadinha até o topo do penhasco. E lá estava Zé Vitinho.
Bêbado. E um burro ao lado. Meu velho! Meu querido velho!,
choramingou dona Santa. Vem pra casa, meu lindo! Eu não sou Zé
Vitinho, não, Zé Vitinho é esse meu colega aqui, e apontava o
burro, e ninguém vai me separar dele não, sai, sai, negada. E como
ninguém saísse e dona Santa ficasse ali apatetada, Zé Vitinho
montou no burro que escoiceou três vezes, e os dois escafederam-se
penhasco abaixo, e a negada ficou de boca aberta vendo o burro correr
como sangue puro e Zé Vitinho gritando: vamos ver Deus, Zé Vitinho,
vamos juntos ver Deus! E sumiram nos longes, manhãzinha, quando o
sol apontava.
Moral da estória: Pra baixo todo santo
ajuda.
Hilda Hilst, in Jornal
Correio Popular (1993)
Nenhum comentário:
Postar um comentário