O
surgimento da ciência e da indústria modernas trouxe consigo a
revolução seguinte nas relações entre homens e animais. Durante a
Revolução Agrícola, a humanidade silenciou animais e plantas e
transformou a grande ópera animista num diálogo entre o homem e
deuses. No decorrer da Revolução Científica, a humanidade
silenciou também os deuses. O mundo transformou-se em um one man
show . O gênero humano estava sozinho num palco vazio, falando
consigo mesmo, negociando com ninguém e adquirindo poderes enormes
sem nenhuma obrigação. Depois de decifrar as leis mudas da física,
da química e da biologia, o gênero humano agora faz com elas o que
quiser.
Quando
um caçador antigo ia para a savana, ele pedia ajuda ao touro
selvagem, e o touro pedia algo ao caçador. Quando o antigo
fazendeiro queria que suas vacas produzissem muito leite, pedia ajuda
a um deus celestial grandioso, e o deus estipulava suas condições.
Quando a equipe de avental branco do Departamento de Pesquisa e
Desenvolvimento da Nestlé quer aumentar a produção de laticínios,
ela estuda genética — e os genes nada pedem em troca.
Mas,
assim como os caçadores e os agricultores, os profissionais de
Pesquisa e Desenvolvimento também têm seus mitos. O mais famoso
deles descaradamente plagiou a lenda da Árvore do Conhecimento e o
Jardim do Éden, mas transfere a ação para o jardim da Woolsthorpe
Manor, em Lincolnshire. Segundo esse mito, Isaac Newton estava
sentado ali, sob uma macieira, quando uma maçã madura caiu em sua
cabeça. Newton começou a se perguntar por que a fruta caiu direto
para baixo, e não para os lados ou para cima. Esse questionamento
levou-a à descobrir a gravidade e as leis da mecânica newtoniana.
A
história de Newton vira o mito da Árvore do Conhecimento de cabeça
para baixo. No Jardim do Éden a serpente dá início ao drama,
tentando os humanos ao pecado, e com isso desfere sobre eles a ira de
Deus. Adão e Eva são um joguete para a serpente e para Deus. Em
contrapartida, no Jardim de Woolsthorpe o homem é o agente único.
Embora o próprio Newton fosse um cristão profundamente religioso,
que dedicava muito mais tempo ao estudo da Bíblia do que às leis da
física, a Revolução Científica que ele ajudou a desencadear
delegava a Deus um papel secundário. Quando os sucessores de Newton
se puseram a escrever seu mito do Gênese, não usaram nem Deus nem a
serpente. O Jardim de Woolsthorpe é conduzido pelas leis cegas da
natureza, e a iniciativa de decifrá-las é estritamente humana. A
história pode ter começado com uma maçã que cai na cabeça de
Newton, mas a maçã não fez isso de propósito.
No
mito do Jardim do Éden, os humanos são punidos por sua curiosidade
e por seu desejo de adquirir conhecimento. Deus os expulsa do
Paraíso. No mito do Jardim de Woolsthorpe, ninguém pune Newton —
acontece exatamente o contrário. Graças a sua curiosidade, o gênero
humano adquire uma compreensão melhor do universo, fica mais
poderoso e dá um passo adiante em direção ao paraíso tecnológico.
Um sem-número de professores em todo o mundo reconta o mito de
Newton para estimular a curiosidade, sugerindo que basta adquirir
conhecimento para sermos capazes de criar o paraíso aqui na Terra.
Na
verdade, Deus está presente até mesmo no mito de Newton. O próprio
Newton é Deus. Quando a biotecnologia, a nanotecnologia e outros
frutos da ciência amadurecerem, o Homo sapiens alcançará
poderes divinos e fechará o círculo de volta à Árvore do
Conhecimento bíblica. Os antigos caçadores-coletores foram somente
outra espécie animal. Os agricultores consideravam-se o ápice da
criação. Os cientistas vão nos elevar à categoria de deuses.
Enquanto
a Revolução Agrícola deu origem às religiões teístas, a
Revolução Científica fez nascerem as religiões humanistas, nas
quais humanos substituem deuses. Os teístas cultuam theos
(“deus”, em grego), e os humanistas cultuam humanos. A ideia
fundamental das religiões humanistas, como o liberalismo, o
comunismo e o nazismo, é que o Homo sapiens tem uma essência
única e sagrada, fonte de todo o sentido e de toda a autoridade no
Universo. Tudo o que acontece no cosmo é considerado bom ou mau de
acordo com o impacto que exerce sobre o Homo sapiens.
O
teísmo justificava a agricultura tradicional em nome de Deus, ao
passo que o humanismo justifica a moderna lavoura industrial em nome
do Homem. A lavoura industrial santifica as necessidades, os
caprichos e as vontades humanos, descartando todo o resto. A lavoura
industrial não tem verdadeiro interesse em animais, os quais não
compartilham a santidade na natureza humana. E os deuses não lhe são
úteis, porque a ciência e a tecnologia modernas conferem aos
humanos poderes que excedem em muito os dos antigos deuses. A ciência
permite que companhias modernas sujeitem vacas, porcos e galinhas a
condições mais extremas do que as que prevaleciam nas sociedades
agrícolas tradicionais.
No
Egito antigo, no Império Romano ou na China medieval, os humanos só
tinham uma compreensão rudimentar da bioquímica, da genética, da
zoologia e da epidemiologia. Consequentemente, sua capacidade de
manipulação era limitada. Naqueles tempos, porcos, vacas e galinhas
andavam livremente entre as casas e procuravam tesouros comestíveis
nos montes de lixo ou na mata próxima. Se um camponês ambicioso
tivesse de confinar milhares de animais em compartimentos
superpovoados, disso resultaria provavelmente uma epidemia mortal que
acabaria com todos os animais e também com muitos aldeões. Nenhum
sacerdote, xamã ou deus poderia evitá-la.
No
entanto, depois que a ciência moderna decifrou os segredos das
epidemias, dos patógenos e dos antibióticos, gaiolas, redis e
chiqueiros industriais tornaram-se factíveis. Com a ajuda de
vacinas, medicamentos, hormônios, pesticidas, sistemas de ar
condicionado centrais e comedouros automáticos, atualmente é
possível compactar dezenas de milhares de porcos, vacas ou galinhas
em fileiras bem-arrumadas de gaiolas abarrotadas e produzir carne,
leite e ovos com uma eficácia sem precedentes.
Em
anos recentes, quando se começou a repensar as relações entre
humanos e animais, essas práticas passaram a ser alvo de críticas
crescentes. Demonstramos um interesse inédito no destino das
chamadas formas inferiores de vida, talvez porque estejamos a ponto
de nos tornar uma. Se e quando programas de computador atingirem uma
inteligência sobre-humana e um poder jamais visto, deveremos
valorizar esses programas mais do que valorizamos os humanos? Seria
aceitável, por exemplo, que uma inteligência artificial explorasse
os humanos e até os matasse para contemplar as necessidades de seus
próprios desejos? Se a resposta é negativa, a despeito da
inteligência e do poder superiores, por que é ético que humanos
explorem e matem porcos? Será que os humanos são dotados de alguma
centelha mágica, de uma inteligência superior e de um poder maior
que os distingue de porcos, galinhas, chimpanzés e programas de
computador? Se sim, de onde vieram essa centelha e a certeza de que
uma inteligência artificial nunca poderá adquiri-la? E se tal
centelha não existe, haveria algum motivo para continuar a atribuir
um valor especial à vida humana, mesmo depois que computadores
superarem os humanos em inteligência e em poder? Com efeito, o que
há nos humanos que nos faz tão inteligentes e poderosos, e qual é
a probabilidade de que entidades não humanas venham a rivalizar
conosco e nos ultrapassar?
Yuval
Noah Harari,
in
Homo Deus: Uma breve
história do amanhã
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