quinta-feira, 25 de julho de 2019

Quinhentos anos de solidão

O surgimento da ciência e da indústria modernas trouxe consigo a revolução seguinte nas relações entre homens e animais. Durante a Revolução Agrícola, a humanidade silenciou animais e plantas e transformou a grande ópera animista num diálogo entre o homem e deuses. No decorrer da Revolução Científica, a humanidade silenciou também os deuses. O mundo transformou-se em um one man show . O gênero humano estava sozinho num palco vazio, falando consigo mesmo, negociando com ninguém e adquirindo poderes enormes sem nenhuma obrigação. Depois de decifrar as leis mudas da física, da química e da biologia, o gênero humano agora faz com elas o que quiser.
Quando um caçador antigo ia para a savana, ele pedia ajuda ao touro selvagem, e o touro pedia algo ao caçador. Quando o antigo fazendeiro queria que suas vacas produzissem muito leite, pedia ajuda a um deus celestial grandioso, e o deus estipulava suas condições. Quando a equipe de avental branco do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Nestlé quer aumentar a produção de laticínios, ela estuda genética — e os genes nada pedem em troca.
Mas, assim como os caçadores e os agricultores, os profissionais de Pesquisa e Desenvolvimento também têm seus mitos. O mais famoso deles descaradamente plagiou a lenda da Árvore do Conhecimento e o Jardim do Éden, mas transfere a ação para o jardim da Woolsthorpe Manor, em Lincolnshire. Segundo esse mito, Isaac Newton estava sentado ali, sob uma macieira, quando uma maçã madura caiu em sua cabeça. Newton começou a se perguntar por que a fruta caiu direto para baixo, e não para os lados ou para cima. Esse questionamento levou-a à descobrir a gravidade e as leis da mecânica newtoniana.
A história de Newton vira o mito da Árvore do Conhecimento de cabeça para baixo. No Jardim do Éden a serpente dá início ao drama, tentando os humanos ao pecado, e com isso desfere sobre eles a ira de Deus. Adão e Eva são um joguete para a serpente e para Deus. Em contrapartida, no Jardim de Woolsthorpe o homem é o agente único. Embora o próprio Newton fosse um cristão profundamente religioso, que dedicava muito mais tempo ao estudo da Bíblia do que às leis da física, a Revolução Científica que ele ajudou a desencadear delegava a Deus um papel secundário. Quando os sucessores de Newton se puseram a escrever seu mito do Gênese, não usaram nem Deus nem a serpente. O Jardim de Woolsthorpe é conduzido pelas leis cegas da natureza, e a iniciativa de decifrá-las é estritamente humana. A história pode ter começado com uma maçã que cai na cabeça de Newton, mas a maçã não fez isso de propósito.
No mito do Jardim do Éden, os humanos são punidos por sua curiosidade e por seu desejo de adquirir conhecimento. Deus os expulsa do Paraíso. No mito do Jardim de Woolsthorpe, ninguém pune Newton — acontece exatamente o contrário. Graças a sua curiosidade, o gênero humano adquire uma compreensão melhor do universo, fica mais poderoso e dá um passo adiante em direção ao paraíso tecnológico. Um sem-número de professores em todo o mundo reconta o mito de Newton para estimular a curiosidade, sugerindo que basta adquirir conhecimento para sermos capazes de criar o paraíso aqui na Terra.
Na verdade, Deus está presente até mesmo no mito de Newton. O próprio Newton é Deus. Quando a biotecnologia, a nanotecnologia e outros frutos da ciência amadurecerem, o Homo sapiens alcançará poderes divinos e fechará o círculo de volta à Árvore do Conhecimento bíblica. Os antigos caçadores-coletores foram somente outra espécie animal. Os agricultores consideravam-se o ápice da criação. Os cientistas vão nos elevar à categoria de deuses.

Enquanto a Revolução Agrícola deu origem às religiões teístas, a Revolução Científica fez nascerem as religiões humanistas, nas quais humanos substituem deuses. Os teístas cultuam theos (“deus”, em grego), e os humanistas cultuam humanos. A ideia fundamental das religiões humanistas, como o liberalismo, o comunismo e o nazismo, é que o Homo sapiens tem uma essência única e sagrada, fonte de todo o sentido e de toda a autoridade no Universo. Tudo o que acontece no cosmo é considerado bom ou mau de acordo com o impacto que exerce sobre o Homo sapiens.
O teísmo justificava a agricultura tradicional em nome de Deus, ao passo que o humanismo justifica a moderna lavoura industrial em nome do Homem. A lavoura industrial santifica as necessidades, os caprichos e as vontades humanos, descartando todo o resto. A lavoura industrial não tem verdadeiro interesse em animais, os quais não compartilham a santidade na natureza humana. E os deuses não lhe são úteis, porque a ciência e a tecnologia modernas conferem aos humanos poderes que excedem em muito os dos antigos deuses. A ciência permite que companhias modernas sujeitem vacas, porcos e galinhas a condições mais extremas do que as que prevaleciam nas sociedades agrícolas tradicionais.
No Egito antigo, no Império Romano ou na China medieval, os humanos só tinham uma compreensão rudimentar da bioquímica, da genética, da zoologia e da epidemiologia. Consequentemente, sua capacidade de manipulação era limitada. Naqueles tempos, porcos, vacas e galinhas andavam livremente entre as casas e procuravam tesouros comestíveis nos montes de lixo ou na mata próxima. Se um camponês ambicioso tivesse de confinar milhares de animais em compartimentos superpovoados, disso resultaria provavelmente uma epidemia mortal que acabaria com todos os animais e também com muitos aldeões. Nenhum sacerdote, xamã ou deus poderia evitá-la.
No entanto, depois que a ciência moderna decifrou os segredos das epidemias, dos patógenos e dos antibióticos, gaiolas, redis e chiqueiros industriais tornaram-se factíveis. Com a ajuda de vacinas, medicamentos, hormônios, pesticidas, sistemas de ar condicionado centrais e comedouros automáticos, atualmente é possível compactar dezenas de milhares de porcos, vacas ou galinhas em fileiras bem-arrumadas de gaiolas abarrotadas e produzir carne, leite e ovos com uma eficácia sem precedentes.
Em anos recentes, quando se começou a repensar as relações entre humanos e animais, essas práticas passaram a ser alvo de críticas crescentes. Demonstramos um interesse inédito no destino das chamadas formas inferiores de vida, talvez porque estejamos a ponto de nos tornar uma. Se e quando programas de computador atingirem uma inteligência sobre-humana e um poder jamais visto, deveremos valorizar esses programas mais do que valorizamos os humanos? Seria aceitável, por exemplo, que uma inteligência artificial explorasse os humanos e até os matasse para contemplar as necessidades de seus próprios desejos? Se a resposta é negativa, a despeito da inteligência e do poder superiores, por que é ético que humanos explorem e matem porcos? Será que os humanos são dotados de alguma centelha mágica, de uma inteligência superior e de um poder maior que os distingue de porcos, galinhas, chimpanzés e programas de computador? Se sim, de onde vieram essa centelha e a certeza de que uma inteligência artificial nunca poderá adquiri-la? E se tal centelha não existe, haveria algum motivo para continuar a atribuir um valor especial à vida humana, mesmo depois que computadores superarem os humanos em inteligência e em poder? Com efeito, o que há nos humanos que nos faz tão inteligentes e poderosos, e qual é a probabilidade de que entidades não humanas venham a rivalizar conosco e nos ultrapassar?
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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