Caros
amigos:
A
leitura é o propósito que aqui nos junta. Nós queremos todos que
se promova a leitura e se valorize o livro. E eu queria falar
exatamente da palavra “ler”. Muitas vezes pensamos a nossa língua
como algo que sempre existiu e que sempre existiu tal como a
conhecemos hoje. Mas as palavras nascem, mudam de rosto, envelhecem e
morrem. É importante saber onde nasceu cada uma delas, conhecer-lhe
os parentes e saber do namoro que a fez nascer. Entender a origem e a
história das palavras faz-nos ser mais donos de um idioma que é
nosso e que não apenas dá voz ao pensamento como já é o próprio
pensamento. Ao sermos donos das palavras somos mais donos da nossa
existência.
A
palavra “ler” vem do latim legere e queria dizer
“escolher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por
exemplo, selecionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica
está bem patente no nosso termo “eleger”. Ora o drama é que
hoje estamos deixando de escolher. Estamos deixando de ler no sentido
da raiz da palavra. Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais
somos objeto de apelos que nos convertem em números, em estatísticas
de mercado.
A
armadilha do idioma é já um primeiro tropeço no caminho para
chegarmos aos outros e a nós mesmos. Pensamos na nossa língua mas
não pensamos essa mesma língua. Do mesmo modo, deixamos de ler a
nossa própria língua. E porque deixamos de ler somos surpreendidos
por ausências e desfasamentos. Conceitos e categorias que nos
parecem inocentes e universais não se apresentam universalmente do
mesmo modo. Eu vivo num país, Moçambique, em que se costuram várias
fronteiras interiores. São fronteiras de culturas, línguas, etnias,
religiões. Esse convívio com a diversidade me obriga a revisitar
palavras e conceitos que me parecem impensadamente globais. E vou
aprendendo coisas curiosas. Por exemplo, vou sabendo de pais que são
tios, de tias que são mães, de primos que são irmãos. Tudo isto
porque as relações de parentesco não podem ser traduzidas com a
facilidade de um assunto técnico. E vou sabendo de leões que,
afinal, são pessoas, de crocodilos que são animais de alguém, de
pessoas que, depois da morte, renascem em perdizes, em leopardos, em
morros de muchém.
As
armadilhas de dentro
A
nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que
separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto
menos entendemos, mais julgamos.
A
cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de
nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que
nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que
pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar
as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de
armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de
passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental.
Escolhi
falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nómadas
deambulando entre ecos e sombras.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano
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