A
arte rasga neblinas ideológicas, permitindo que o mundo (turvo ele
também), enfim, apareça. Só através da arte – ainda que dita
“ciência” – nos livramos das carcaças do artifício e
chegamos à neblina do real, isto é, ao mundo tal qual é. O
pensamento verdadeiro é aquele que vem depois dessa decepção com a
objetividade, nos obriga a pensar Vilém Flusser em seu
extraordinário Natural:mente (editora Annablume). São
pensamentos difíceis. É preciso desacreditar no conhecimento
objetivo para que ele, débil, precário e um tanto ficcional, comece
a funcionar.
É
impossível pensar bem sem essa decepção com nosso falso “saber
objetivo”, Flusser (1920-1991), sem piedade, insiste. Só é
possível pensar, portanto, se o sujeito, em vez de se distanciar de
seu objeto, a ele se agarra. Mas que visão infernal para os
assépticos homens de ciência! Em outras palavras: se o sujeito
enfim admitir a grande rede de ficções que, como as grades de uma
cela, mas também como pontes, permeiam sua relação com o mundo. A
ficção – logo ela! – está na base do conhecimento. Não do
conhecimento transcendente, arrogante, “objetivo”, mas daquele
que é aproximação e carícia, mas também névoa e atropelo. Que
é, em uma palavra, humano.
Trata
Flusser em seu perturbador livro, em particular, da ideia de Natureza
– manifestação máxima, nós costumamos crer, do “mundo real”.
A Natureza existe, indiferente a nossos desejos ou ambições,
pensamos. Nós a observamos de longe, nós a modificamos e dela
tiramos proveitos; mas a Natureza continua dona de si, a exibir nossa
impotência. Contra a Natureza, erguemos, homens civilizados que
somos, a muralha da Cultura. Mostra-nos Flusser, porém, que a
Cultura, em vez de libertar o homem da Natureza, se transforma em uma
“segunda Natureza”. Uma máscara natural, consoladora e benévola,
com que encobrimos o natural insuportável.
Não
é que, ao longo dos séculos, tenhamos avançado desde a Natureza –
bruta, primitiva – até a Cultura – complexa e sutil. Afirma
Flusser que se deu exatamente o contrário: da Cultura, ainda que
arcaica, avançamos, lentamente, como cegos, à ideia de Natureza que
hoje nos oprime. Sim, a Natureza é uma invenção humana – uma
ficção! Não que inexista um mundo dito natural; mas ele está tão
distante de nós, está envolto em neblina tão espessa, que dele só
percebemos alguns traços.
A
antiga ideia de Natureza (a “physis” grega) tinha como
objeto um conjunto animado de coisas: o vivo. A nova ideia de
Natureza, fruto da Física moderna, limita-se a estudar os corpos
inanimados: aquilo que podemos observar. Mostra-nos Flusser que demos
um medonho salto para trás. Finda a Idade Média, a ciência tratou
de afastar os homens da nebulosidade das coisas, para que eles as
observassem de longe, calmamente, “com objetividade”. Esqueceram
os cientistas, porém, que os homens estão sempre implicados no que
observam. Mais perturbador ainda: eles são parte do que observam.
Assim
como os antigos “estavam obrigados a carregar nas costas o
aristotelismo” – compara Flusser –, “nós somos obrigados a
carregar o fardo muito mais pesado dos conhecimentos objetivos”.
Teria chegado a hora, porém, de furar a “barreira da objetividade”
e retornar, com firmeza, embora com receios, à vasta neblina. Só
isso nos permitirá chegar ao humano. “Enquanto o saber científico
perambulava por regiões extra-humanas, nas quais o homem não está
existencialmente interessado, era possível manter a ficção do
conhecimento objetivo.”
É
o que Flusser nos propõe: que nos arrisquemos a observar a
objetividade contemporânea – expressa não só na ciência, mas na
mídia, na economia, nas guerras, no pragmatismo – como uma
“segunda ficção”. Mesmo a Natureza, ele diz, não passa de um
“horizonte ficticiamente objetivo”. A objetividade, em resumo,
não é um olhar, mas um tampão. À entrada do século XXI, a
ciência avança (ou recua?) desde o distante (o objetivo) ao mais
próximo (o subjetivo). Só há ciência, agora, se o sujeito estiver
incluído. Sim, o sujeito, com seus sonhos, suas fantasias, suas
ficções. Logo ele! Resultado: é preciso aceitar de uma vez que o
conhecimento inclui sempre a ficção.
É
atordoante, mas também inspirador o livro de Vilém Flusser.
Conjunto de delicados ensaios dedicados aos pássaros, à lua, às
montanhas, à grama, aos ventos, à neblina, Flusser – ensaísta
checo que viveu no Brasil entre 1941 e 1972 – desmonta, uma a uma,
nossas mais caras ilusões. Lança-nos, assim, em uma Natureza
nebulosa, encoberta pela miragem do sonho natural – seja ele o que
eleva os alpinistas ou o que degola as vacas. Afunda-nos, com isso,
na grande borra da existência. Contudo, só a partir dela é
possível pensar.
Que
resultados geram essas ideias? Responde Flusser: “Admitida a
objetividade como ideal impossível, o distanciamento passa a ser
desejável, porque não pode mais ser confundido com a transcendência
irresponsável”. Em outras palavras: só depois da decepção com o
mundo objetivo, só depois de aceitar o quanto nele estamos
implicados, é possível dar novo passo atrás, para observá-lo já
não mais como algo distante, mas como algo que nos inclui.
Afirma
Flusser: “A objetividade no sentido de conhecimento de um sujeito
que paira por cima do conhecido é ideal impossível e quiçá
indesejável”. O sujeito que observa não paira; afunda. Observar o
mundo é, ao mesmo tempo, vivê-lo. E vivê-lo não de maneira
“pura”, mas com todo o conjunto de fantasias e de ficções que
desenham nossa existência.
Os
ensaios de Flusser alargam, ao extremo, a noção de ficção. Neles,
a ficção deixa de ser um gênero literário para se tornar um
elemento fundamental não só na constituição do sujeito, mas na
produção de conhecimento. O sonho, a mentira, a ilusão são,
enfim, bem-vindos! Não como farsantes ou falsários, não como
elementos de deformação ou falsificação; mas como partes
essenciais da grande neblina que nos define enquanto humanos. Somos
homens das névoas, Flusser nos obriga a aceitar. É disso que
devemos partir, ou nada teremos.
José
Castello, in Sábados inquietos
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