sábado, 13 de julho de 2019

Flusser na neblina

A arte rasga neblinas ideológicas, permitindo que o mundo (turvo ele também), enfim, apareça. Só através da arte – ainda que dita “ciência” – nos livramos das carcaças do artifício e chegamos à neblina do real, isto é, ao mundo tal qual é. O pensamento verdadeiro é aquele que vem depois dessa decepção com a objetividade, nos obriga a pensar Vilém Flusser em seu extraordinário Natural:mente (editora Annablume). São pensamentos difíceis. É preciso desacreditar no conhecimento objetivo para que ele, débil, precário e um tanto ficcional, comece a funcionar.
É impossível pensar bem sem essa decepção com nosso falso “saber objetivo”, Flusser (1920-1991), sem piedade, insiste. Só é possível pensar, portanto, se o sujeito, em vez de se distanciar de seu objeto, a ele se agarra. Mas que visão infernal para os assépticos homens de ciência! Em outras palavras: se o sujeito enfim admitir a grande rede de ficções que, como as grades de uma cela, mas também como pontes, permeiam sua relação com o mundo. A ficção – logo ela! – está na base do conhecimento. Não do conhecimento transcendente, arrogante, “objetivo”, mas daquele que é aproximação e carícia, mas também névoa e atropelo. Que é, em uma palavra, humano.
Trata Flusser em seu perturbador livro, em particular, da ideia de Natureza – manifestação máxima, nós costumamos crer, do “mundo real”. A Natureza existe, indiferente a nossos desejos ou ambições, pensamos. Nós a observamos de longe, nós a modificamos e dela tiramos proveitos; mas a Natureza continua dona de si, a exibir nossa impotência. Contra a Natureza, erguemos, homens civilizados que somos, a muralha da Cultura. Mostra-nos Flusser, porém, que a Cultura, em vez de libertar o homem da Natureza, se transforma em uma “segunda Natureza”. Uma máscara natural, consoladora e benévola, com que encobrimos o natural insuportável.
Não é que, ao longo dos séculos, tenhamos avançado desde a Natureza – bruta, primitiva – até a Cultura – complexa e sutil. Afirma Flusser que se deu exatamente o contrário: da Cultura, ainda que arcaica, avançamos, lentamente, como cegos, à ideia de Natureza que hoje nos oprime. Sim, a Natureza é uma invenção humana – uma ficção! Não que inexista um mundo dito natural; mas ele está tão distante de nós, está envolto em neblina tão espessa, que dele só percebemos alguns traços.
A antiga ideia de Natureza (a “physis” grega) tinha como objeto um conjunto animado de coisas: o vivo. A nova ideia de Natureza, fruto da Física moderna, limita-se a estudar os corpos inanimados: aquilo que podemos observar. Mostra-nos Flusser que demos um medonho salto para trás. Finda a Idade Média, a ciência tratou de afastar os homens da nebulosidade das coisas, para que eles as observassem de longe, calmamente, “com objetividade”. Esqueceram os cientistas, porém, que os homens estão sempre implicados no que observam. Mais perturbador ainda: eles são parte do que observam.
Assim como os antigos “estavam obrigados a carregar nas costas o aristotelismo” – compara Flusser –, “nós somos obrigados a carregar o fardo muito mais pesado dos conhecimentos objetivos”. Teria chegado a hora, porém, de furar a “barreira da objetividade” e retornar, com firmeza, embora com receios, à vasta neblina. Só isso nos permitirá chegar ao humano. “Enquanto o saber científico perambulava por regiões extra-humanas, nas quais o homem não está existencialmente interessado, era possível manter a ficção do conhecimento objetivo.”
É o que Flusser nos propõe: que nos arrisquemos a observar a objetividade contemporânea – expressa não só na ciência, mas na mídia, na economia, nas guerras, no pragmatismo – como uma “segunda ficção”. Mesmo a Natureza, ele diz, não passa de um “horizonte ficticiamente objetivo”. A objetividade, em resumo, não é um olhar, mas um tampão. À entrada do século XXI, a ciência avança (ou recua?) desde o distante (o objetivo) ao mais próximo (o subjetivo). Só há ciência, agora, se o sujeito estiver incluído. Sim, o sujeito, com seus sonhos, suas fantasias, suas ficções. Logo ele! Resultado: é preciso aceitar de uma vez que o conhecimento inclui sempre a ficção.
É atordoante, mas também inspirador o livro de Vilém Flusser. Conjunto de delicados ensaios dedicados aos pássaros, à lua, às montanhas, à grama, aos ventos, à neblina, Flusser – ensaísta checo que viveu no Brasil entre 1941 e 1972 – desmonta, uma a uma, nossas mais caras ilusões. Lança-nos, assim, em uma Natureza nebulosa, encoberta pela miragem do sonho natural – seja ele o que eleva os alpinistas ou o que degola as vacas. Afunda-nos, com isso, na grande borra da existência. Contudo, só a partir dela é possível pensar.
Que resultados geram essas ideias? Responde Flusser: “Admitida a objetividade como ideal impossível, o distanciamento passa a ser desejável, porque não pode mais ser confundido com a transcendência irresponsável”. Em outras palavras: só depois da decepção com o mundo objetivo, só depois de aceitar o quanto nele estamos implicados, é possível dar novo passo atrás, para observá-lo já não mais como algo distante, mas como algo que nos inclui.
Afirma Flusser: “A objetividade no sentido de conhecimento de um sujeito que paira por cima do conhecido é ideal impossível e quiçá indesejável”. O sujeito que observa não paira; afunda. Observar o mundo é, ao mesmo tempo, vivê-lo. E vivê-lo não de maneira “pura”, mas com todo o conjunto de fantasias e de ficções que desenham nossa existência.
Os ensaios de Flusser alargam, ao extremo, a noção de ficção. Neles, a ficção deixa de ser um gênero literário para se tornar um elemento fundamental não só na constituição do sujeito, mas na produção de conhecimento. O sonho, a mentira, a ilusão são, enfim, bem-vindos! Não como farsantes ou falsários, não como elementos de deformação ou falsificação; mas como partes essenciais da grande neblina que nos define enquanto humanos. Somos homens das névoas, Flusser nos obriga a aceitar. É disso que devemos partir, ou nada teremos.
José Castello, in Sábados inquietos

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