Estão
apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois atores avançam pelo
palco, saindo das coxias à esquerda para o centro da cena, um homem
entra na sala escura, e com ele uma nesga da luz das cinco pela
fresta da porta que entreabriu ao fundo e que separa a plateia do
hall e da rua, onde o dia segue o seu curso com um burburinho de
buzinas, motores e sirenes. O diretor, na quinta fila, procura com a
mão, tateando, a coxa de sua assistente, para lhe dizer alguma coisa
ao ouvido, e o iluminador interrompe a piada que ia sussurrando ao
técnico a seu lado, no mezanino, já que retomam a cena. Quando os
dois atores colocam os pés de novo no palco, avançando das coxias à
esquerda para o centro, e interrompendo também o que sussurravam um
ao outro nos bastidores, para passar em alto e bom som ao diálogo
que decoraram, o homem que acabou de entrar ao fundo é ainda menos
que um vulto sem rosto, porque já não tem nem mesmo a nesga de luz
das cinco para destacá-lo da penumbra, agora que a porta que separa
a sala escura do hall e da rua se fechou. O diretor com a mão na
coxa da assistente, depois de lhe sussurrar qualquer coisa ao ouvido,
que a faz rir baixinho, controlada, espera ansioso, e pela enésima
vez, que a fala seja dita pelo ator com a entonação desejada, e o
iluminador, no mezanino, aguarda por seu turno uma nova interrupção
— no fundo, mesmo que inconscientemente, torce por mais um fracasso
da interpretação, para poder terminar de uma vez por todas a piada
que contava ao técnico.
Um
ator diz ao outro, no centro do palco: “Você é o malfeitor; e por
isso preciso saber quem é você, onde está, de onde vem, do que é
capaz para ter tamanho poder e me provocar sem prevenir, devastando o
meu pasto verdejante, e minando, para derrubá-lo, o meu muro de
arrimo.” E é quando o outro, que embora sem a foice ou o manto
(estão apenas ensaiando) responde pela morte, vai abrindo a boca,
que o diretor mais uma vez, tirando a mão da coxa da assistente,
interrompe a cena com um gesto, para perguntar num tom
propositalmente inaudível, de tão irritado que está, quantas vezes
mais vai ter de explicar.
Ele
repete, como se falasse para dentro, que se trata de um texto do
século XV, que o humilde lavrador invoca a morte (aqui representada
por um homem) com as palavras que lhe restam como último recurso,
quer que ela se compadeça dele e lhe devolva a mulher adorada,
vítima das atrocidades da guerra. O diretor repete irritado que
falta vigor à interpretação do ator, e desespero, não parece que
o humilde lavrador esteja realmente sofrendo ou indignado pela
injustiça da morte da mulher na flor da idade. Diz isso aos dois
atores e depois, enquanto eles voltam para as coxias, sussurra a
mesma coisa ao ouvido da assistente, arrematando com uma gracinha que
a faz sacudir num risinho sincopado.
De
volta às coxias, o ator que interpreta o humilde lavrador aproveita
para retomar com o outro que interpreta a morte o sussurro que havia
interrompido. Desanca o diretor, diz que não dá para mostrar
desespero com um texto daqueles, inverossímil, ninguém vai falar
com a morte daquele jeito depois de perder a mulher de uma maneira
violenta. Resmunga baixinho qualquer coisa sobre o tipo de
representação que aquela cena exige, na sua opinião, e que tem a
ver com um certo distanciamento. De repente, no meio da frase
sussurrada, olhando o relógio (não precisa tirá-lo, estão apenas
ensaiando), exclama a hora num murmúrio, fala qualquer coisa sobre o
atraso da própria mulher, que ela já devia ter chegado, e ao mesmo
tempo em que diz isso, o iluminador no mezanino tenta inutilmente
sussurrar o final da sua piada, porque mal esboça o desenlace cômico
e os dois atores já estão de volta ao palco, seguindo os sinais
mudos da assistente do diretor, e o homem ao fundo da sala, após uns
instantes parado indistinto dentro da sombra, já avança alguns
passos pelo corredor lateral da plateia.
O
ator que interpreta o humilde lavrador vira-se para o outro, que
interpreta a morte, embora sem foice ou manto (estão apenas
ensaiando), e vai abrir a boca quando percebe que, em vez de olhá-lo,
o diretor, sempre com a mão na coxa da assistente, cochicha algo ao
seu ouvido que a faz levar a mão aos lábios para impedir que o riso
transborde. Percebe o diretor, que está no centro da sala, na quinta
fila, mas não o vulto que avança pelo lado, na penumbra. Irritado,
o ator repete a cena idêntica à que tinha feito antes, declamando
sua fala com o mesmo distanciamento que lhe parece tão apropriado,
ao que o diretor enfurecido se levanta e, balançando os braços e
sacudindo a cabeça, mudo, dá a entender que está péssimo.
Com
a nova interrupção, o iluminador trata de retomar do início a
piada que contava ao técnico, porque, a cada vez que a retoma, volta
sempre ao começo com medo de que a quebra interfira no efeito
cômico. Seu sussurro agora é mais corrido, tentando fazer caber a
piada inteira no espaço de tempo entre a interrupção do diretor e
o retorno dos atores ao palco. Nas coxias, enquanto olha o relógio
(estão apenas ensaiando), o ator que faz o humilde lavrador repete
baixinho ao outro, que faz a morte, que a mulher a esta altura já
devia ter chegado, como tinham combinado, porque ele próprio lhe
dissera que tudo terminaria às cinco, não podia imaginar que o
diretor se revelasse um tamanho idiota justamente com esse texto
inverossímil, e que o ensaio se arrastasse tanto.
A
assistente dá o sinal mudo para que recomecem e o iluminador
interrompe inconformado, mais uma vez, já quase no fim, a piada que
sussurrava ao técnico no mezanino, e que corre o risco de perder a
graça pela repetição. O homem que vinha avançando lentamente pelo
corredor lateral agora pára à altura da quinta fila ao ver os dois
atores de novo no palco. O humilde lavrador vira-se para a morte e
diz: “Você é o malfeitor.” O diretor pede que parem. O tom
compreensivo de sua voz é apenas um disfarce que o ator está
cansado de conhecer e em geral precede uma crise de nervos. O diretor
está tentando se controlar, sussurra: “Será que você não
compreende? Ele perdeu a mulher, na flor da idade, está desesperado,
indignado contra a injustiça da morte e dos homens e por isso a
invoca, ainda acredita que pode convencê-la a lhe devolver a mulher
adorada. Ninguém diz isso com distanciamento.
Os
dois saem do palco. Olhando o relógio, o humilde lavrador sussurra
de novo à morte sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher,
que a esta altura já devia estar sentada na plateia. Não entende
por que ela ainda não chegou, como se já não bastasse o atraso do
ensaio, graças à imbecilidade do diretor. E enquanto o humilde
lavrador sussurra a sua indignação, o homem que antes era apenas um
vulto já avança pela quinta fila, agora de lado, na direção do
diretor e de sua assistente, que só o veem quando já está a apenas
algumas poltronas deles. Senta-se para se fazer menos notado quando a
assistente já está com o braço levantado, indicando aos atores que
podem recomeçar, e enquanto ele lhes revela num murmúrio o que veio
anunciar sobre o mundo do lado de fora, e que os petrifica, o
iluminador no mezanino se aproxima num sussurro da conclusão da
piada.
O
humilde lavrador de relógio e a morte sem foice ou manto (estão
apenas ensaiando) entram no palco. O lavrador vira-se para a morte e
reinicia a sua ladainha com a mesma entonação e o distanciamento
que lhe parecem mais apropriados. Mas desta vez, para sua surpresa, o
diretor não o interrompe, porque tem os olhos arregalados e está
lívido enquanto o homem, antes apenas um vulto, lhe sussurra algo ao
ouvido. E ao ver o homem que sussurra ao ouvido do diretor, e o olhar
deste e de sua assistente, que pela primeira vez não o interrompem,
mas permanecem a encará-lo com os olhos aterrados e arregalados (a
assistente com os olhos cheios de lágrimas diante da súplica que o
lavrador faz à morte) enquanto escutam o que o outro lhes diz ao
ouvido, curvado na poltrona ao lado, embora a entonação no palco
tenha sido a mesma e devesse portanto, pela lógica, ser mais uma vez
interrompida, o próprio ator interrompe a ação e por fim
compreende aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da
cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do
lado de fora, com buzinas, motores e sirenes; compreende por que a
mulher não apareceu e afinal o que sente o humilde lavrador;
compreende por que o diretor não o interrompeu desta vez, porque por
fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da
morte; compreende que por um instante encarnou de fato o lavrador,
que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça do destino,
tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar;
compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do
acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro,
diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente, sob as
gargalhadas incontidas do iluminador e do técnico no mezanino,
chegando ao fim da piada.
Bernardo
Carvalho, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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