Exigimos
uma Assembleia Constituinte livremente eleita — é preciso dizer
isto, repetir isto sempre, em todos os recantos do país. Esta
reclamação impõe-se, entra nas consciências, e os políticos que
a princípio desejavam a Constituinte, e depois não a desejavam,
começam a desejá-la de novo, mas de maneira singular: como dádiva
de um presidente escolhido na vigência de leis que se fazem,
desfazem, refazem, voltam a desfazer-se. Querem um presente, coisa
outorgada, pouco mais ou menos a reprodução do que sucedeu em 1937,
com mais aparato, máscara de legitimidade.
É
contra isso que protestamos. Descontenta-nos a ideia de, encobertos
nos remendos da carta meio fascista ainda existente, remendos cada
vez mais encolhidos e esgarçados, eleger um ditador, confiantes
nesta promessa generosa: receberemos de fato aquilo que nos pertence.
Realmente, se nos falta uma Constituição, se a que nos rege é
apenas um simulacro de Constituição, só poderemos eleger um
tirano, e nenhuma vantagem haverá nisso, embora ele seja a melhor
das pessoas, absolutamente digno. Se aceitássemos tal arranjo,
ficaríamos a depender dessa estranha magnanimidade, a depender de um
indivíduo, situação que a experiência nos diz ser por todas as
razões inconveniente. Que nos alvitra um dos candidatos?
— Escolham-me,
e eu permitirei que a Câmara edifique uma espécie de lei básica.
Mas
donde vem essa linguagem? Estamos cansados de ouvir salvadores
vaidosos que nos trituram a paciência, nos amolam com o pronomezinho
irritante: eu, eu, eu, eu. Não temos a ingenuidade necessária
para confiar nos messias que se arrogam o direito de conduzir as
massas arbitrariamente e nos concedem liberalidades no papel e em
discursos, arengam com outros messias, numa lavagem pública de roupa
suja, como se tivéssemos interesse em remexer mazelas pessoais, e
não nos entendem, não nos conhecem, nunca nos entenderão e nos
conhecerão. Afastaram-se em demasia de nós, nem percebem que
acumulamos decepções sobre decepções, anos, séculos de
decepções, e vêm repisar-nos cantigas velhas, caducas, sugeridas
por um individualismo estreito e mesquinho.
Por
que haveríamos de aceitar a concessão que nos propõem? Ela não se
basearia naquele velho privilégio real, já ninguém possui a
faculdade que as religiões criaram de conceder ao povo isto ou
aquilo: seria uma consequência da nossa vontade expressa pelo voto.
Esta vontade é a nossa arma, e não nos resolvemos a aliená-la,
numa credulidade talvez fatal.
— Eu
farei — asseveram estadistas capengas, fechando os olhos a algumas
revoluções, que apesar de tudo se realizaram neste pobre mundo.
A
nossa linguagem é outra. Nada pedimos, pois a criatura mais honesta
se achará em dificuldade se no momento de saldar as suas contas
estiver de mãos vazias. O cumprimento de certas obrigações não
depende dos bons propósitos do devedor. E aí não há exatamente
dívida: há uma oferta, de execução duvidosa.
É
natural que a recusemos, digamos claramente o nosso intuito.
Empregaremos todos os esforços por uma Assembleia Constituinte
livremente eleita. Só ela nos dará tranquilidade, a paz que a
reação procura estorvar por vários meios, forjando intrigas,
semeando mentiras, estabelecendo a desordem, fingindo corrigi-la e
atirando nos espíritos o gérmen de novas desordens, porque é
dessas desarmonias que vive a reação. Desejamos trabalhar em
sossego, livres das ameaças estúpidas que há dez anos tornaram
isto uma senzala. O nosso pequenino fascismo tupinambá encheu os
cárceres e o campo de concentração da Ilha Grande, meteu neles
sujeitos inofensivos, até devotos de padre Cícero, gente de
penitência e rosários, pobres seres tímidos que nos perguntavam
com surpresa verdadeira:
— Por
que é que estamos presos?
Usaremos
todas as nossas forças para que essas infâmias não se repitam. E,
para que elas não se repitam, exigimos uma Assembleia Constituinte
livremente eleita.
Fascistas
confessos, de cruz gamada e sigma, despiram as camisas sujas, lavaram
as mãos torpes, são agora uns inocentinhos bem-comportados, zumbem
com sorrisos de anjos:
— Não
temos nada com isso.
Profissionais
da política malandra, que recebiam instruções da embaixada alemã,
da embaixada italiana, possibilitaram o golpe de novembro e se
beneficiaram com ele, purificaram-se, estão alheios a indecências e
apontam um culpado:
— Foi
ele.
E
jornalistas que aplaudiram as injustiças mais terríveis, as
violências mais ferozes, também se distanciaram do amo, cospem no
prato, arranjam um bode expiatório.
Desses
grupos, mais ou menos avariados, surgem cavaleiros andantes, Quixotes
resolvidos a pôr as coisas nos eixos e desfazer agravos. É
intuitivo que não acreditemos neles. Impossível responsabilizarmos
um homem só pelas misérias que choveram sobre nós. Há muitos
autores delas — e os piores são os que hoje simulam essa pureza
tardia e querem democratizar o país de cima para baixo. É o que
sempre fizeram. Na democracia deles o povo não entra. Fugimos dessa
mistificação. E reclamamos com insistência, gritamos cem vezes,
mil vezes, exibindo esta necessidade: uma Assembleia Constituinte
livremente eleita.
Graciliano
Ramos, in Garrancho (Tribuna Popular, Rio de Janeiro,
10/10/1945)
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