Ele:
tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não
podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo
dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de
dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os
apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um
montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para
casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se
de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo
tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram
recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois
foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de
levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas. Só no
terceiro Carnaval se falaram.
— Como
é teu nome?
— Janice.
E o teu?
— Píndaro.
— O
quê?!
— Píndaro.
— Que
nome!
Ele
de legionário romano, ela de índia americana.
Só
no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se
encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do
ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia
é que era sócia. — Ah.
Foi
o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a
boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe,
se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de
imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca,
ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão,
abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até
o Carnaval que vem” e saiu correndo.
No
baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias
dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um
casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até
na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
— Me
dá alguma coisa.
— O
quê?
— Qualquer
coisa.
— O
leque.
O
leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no
salão.
No
ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à
procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por
ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela,
às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo,
antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não
apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim
para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser
carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava
sendo lavado. O que acontecera? — Você vomitou a alma — disse a
mãe.
Era
exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a
teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela. Mas, no
ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava
ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida. —
Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
Estava
diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto.
Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no
Carnaval.
— E
aquela bailarina espanhola?
— Nem
me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A
fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um
brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos
vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse
“Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava
rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o
Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas
nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O
Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela
alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões
da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo
menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna
adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela
passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos,
principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até
criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de
couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer
foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas,
quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para
a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão,
virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela
enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo
“não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça
no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
Encontraram-se
de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num
aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a
mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse quase
não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la.
Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina
espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te
dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval
que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais
aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro
estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o
endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não
teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
— O
que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela.
— Esqueci
— mentiu ele.
Trocaram
informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos
dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em
Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas
ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz
da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que
todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela
pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele:
digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda
tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu…
Luís
Fernando Veríssimo, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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