segunda-feira, 15 de julho de 2019

Clio cega

Não podemos explicar as escolhas que a história faz, mas podemos dizer algo muito importante sobre elas: as escolhas da história não são feitas em prol dos humanos. Não há prova alguma de que o bem-estar humano inevitavelmente se aprimora com o desenrolar da história. Não há prova alguma de que as culturas mais benéficas para os humanos devem inexoravelmente prosperar e se disseminar, enquanto as menos benéficas desaparecem.
Não há prova alguma de que o cristianismo tenha sido uma escolha melhor do que o maniqueísmo, ou que o Império Árabe tenha sido mais benéfico que o dos persas sassânidas. Não há provas de que a história atua em prol dos humanos porque nos falta uma escala objetiva para medir tais benefícios. Culturas diferentes definem o bem de forma diferente, e não existe um parâmetro objetivo pelo qual julgá-las. Os vitoriosos, é claro, sempre acreditam que sua definição está correta. Mas por que devemos acreditar nos vitoriosos? Os cristãos acreditam que a vitória do cristianismo sobre o maniqueísmo foi benéfica para a humanidade, mas, se não aceitamos a visão de mundo cristã, não temos motivo algum para concordar com eles. Os muçulmanos acreditam que a queda do Império Sassânida nas mãos dos muçulmanos foi benéfica para a humanidade. Mas esses benefícios só são evidentes se aceitarmos a visão de mundo muçulmana. É bem possível que estivéssemos em situação melhor se cristianismo e o islamismo tivessem sido esquecidos ou derrotados.
Um número cada vez maior de estudiosos vê as culturas como um tipo de infecção ou parasita mental, sendo os humanos seus hospedeiros involuntários. Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando. Contanto que os hospedeiros vivam o bastante para transmitir o parasita, este pouco se importa com a condição em que seu hospedeiro se encontra. Da mesma forma, as ideias culturais vivem dentro da mente dos humanos. Elas se multiplicam e se disseminam de um hospedeiro a outro, às vezes enfraquecendo os hospedeiros e até mesmo os matando. Uma ideia cultural – tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra – pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como preço. O humano morre, mas a ideia se espalha. Segundo essa abordagem, as culturas não são conspirações de algumas pessoas para tirar vantagem de outras (como os marxistas tendem a pensar). Ao contrário, as culturas são parasitas mentais que surgem acidentalmente e, depois, tiram vantagem de todas as pessoas infectadas por elas.
Essa abordagem às vezes é chamada de memética. Ela supõe que, assim como a evolução orgânica é baseada na replicação de unidades de informação orgânica chamadas “genes”, a evolução cultural é baseada na replicação de unidades de informação cultural chamadas “memes”. Culturas bem-sucedidas são aquelas que se sobressaem ao reproduzir seus memes, independentemente dos custos e benefícios aos hospedeiros humanos.
A maioria dos estudiosos da área de humanidades desdenha da memética, encarando-a como uma tentativa amadora de explicar processos culturais com analogias biológicas tacanhas. Mas muitos desses estudiosos aceitam seu irmão gêmeo – o pós-modernismo. Os pensadores pós-modernistas falam de discursos, em vez de memes, como os blocos construtores de cultura. Porém, eles também veem as culturas como algo que se propaga sozinho, com pouca consideração pelo bem da humanidade. Por exemplo, os pensadores pós-modernistas descrevem o nacionalismo como uma praga mortal que se espalhou pelo mundo nos séculos XIX e XX, originando guerras, opressão, ódio e genocídio. Assim que as pessoas de um país eram infectadas por ele, os habitantes de países vizinhos também tinham propensão a pegar o vírus. O vírus nacionalista se apresentou como benéfico aos seres humanos, embora tenha beneficiado apenas a si mesmo.
Argumentos similares são comuns nas ciências sociais, sob a égide da teoria dos jogos. A teoria dos jogos explica como, em sistemas com vários jogadores, visões e padrões de comportamento que prejudicam todos os jogadores ainda conseguem se arraigar e se disseminar. As corridas armamentistas são um exemplo famoso. Muitas levaram à falência todos aqueles que participaram delas, sem modificar realmente o equilíbrio de poder militar. Quando o Paquistão compra aviões modernos, a Índia responde na mesma moeda. Quando a Índia desenvolve bombas nucleares, o Paquistão faz o mesmo. Quando o Paquistão aumenta sua marinha, a Índia reage. No fim do processo, o equilíbrio de poder permanece praticamente igual ao que era, mas, enquanto isso, bilhões de dólares que poderiam ter sido investidos em educação ou saúde são gastos em armas. Ainda assim, é difícil resistir à dinâmica da corrida armamentista. “Corridas armamentistas” são um padrão de comportamento que se espalha como um vírus de um país a outro, prejudicando a todos, mas beneficiando a si mesmo segundo os critérios evolutivos de sobrevivência e reprodução. (Tenha em mente que a corrida armamentista, assim como os genes, não tem consciência – ela não procura sobreviver e se reproduzir conscientemente. Sua disseminação é o resultado involuntário de uma poderosa dinâmica.)
Independentemente do nome – teoria dos jogos, pós-modernismo ou memética –, a dinâmica da história não está voltada para o aprimoramento do bem-estar humano. Não há nenhuma base para se pensar que as culturas mais bem-sucedidas da história sejam necessariamente as melhores para o Homo sapiens. Como a evolução, a história não considera a felicidade de organismos individuais. E os indivíduos humanos, por sua vez, costumam ser ignorantes e fracos demais para influenciar o curso da história em benefício próprio. A história progride de uma bifurcação a outra, escolhendo, por razões misteriosas, seguir primeiro esse caminho, depois outro. Por volta de 1500, a história fez sua escolha mais importante, modificando não só o destino da humanidade como também provavelmente o destino de toda vida na Terra. Nós a chamamos de Revolução Científica. Começou na Europa Ocidental, em uma grande península na extremidade ocidental da Afro-Ásia, que até então não havia desempenhado nenhum papel importante na história. Por que a Revolução Científica começou bem ali, e não na China ou na Índia? Por que começou em meados do segundo milênio da era cristã, e não dois séculos antes, ou três séculos depois? Não sabemos. Os estudiosos propuseram dezenas de teorias, mas nenhuma delas é muito convincente.
A história tem um horizonte muito amplo de possibilidades, e muitas delas nunca se concretizam. É concebível imaginar a história seguindo por gerações e mais gerações sem passar pela Revolução Científica, assim como é igualmente concebível imaginar a história sem o cristianismo, o Império Romano e moedas de ouro.
Yuval Noah Harari, in Homo sapiens: uma breve história da humanidade

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