domingo, 7 de julho de 2019

Chuva

Ela bateu tão de leve que se não estivesse atrás da porta, contando os passos no corredor, não a teria ouvido. Abri a porta, era Leonor. Na mão um embrulho em papel verde, marcado das primeiras gotas de chuva.
Entre.
Não devia ter vindo.
De pé no meio da sala, com o embrulho e a sombrinha.
Tão linda.
Apague a luz.
Diante da janela brilhou uma lâmpada na rua.
Dá tua sombrinha.
Não vou demorar.
Deixei o pacote na mesa e a sombrinha no cabide.
Sente-se, anjo.
Bem de pé.
Melhor não viesse.
Um relâmpago clareou o aposento. Leonor fez o sinal-da-cruz.
Nossa Mãe, valei-me!
Não ouço. Chegue mais perto.
Estou bem aqui.
Outro relâmpago. Veio sentar-se a meu lado.
Promete se comportar?
Prometo.
Se alguém me viu fico moça falada.
Era não ter pressa. Comecei a alisar a mãozinha.
Com frio?
Ergui a manga do casaco, beijei no braço a penugem que se arrepiava.
Não quero, Afonso.
Seja criança, meu bem.
Eu sabia. Não devia ter vindo.
Fui até a janela, ridículo sem paletó. O tropel de corvos no telhado: era a chuva.
Não seja mau — com voz de choro. — Sente-se aqui. Tão pouco tempo.
O tempo era pouco, mas não devia ter pressa. Sentei-me, as mãos no bolso. Ela deitou a cabeça no meu peito.
Puxa, como bate!
Beijei-lhe a nuca, um maldito cabelo na língua.
Aí, me mordeu.
Mais perto.
Não devia, Afonso.
A porta aberta.
Meu bem, tenha paciência comigo.
Tire o casaco.
O que você quiser. Seja bonzinho, amor.
Meu anjo. Gosto tanto de você. Então ia fazer mal?
Tanto medo.
Feche os olhos.
A chuva aos poucos havia parado.
Chorando?
Estou não.
Já não gosta de mim, não é?
Não é nada.
Sou igual aos outros. Diga logo.
Deitada no sofá, não se mexia. Consertei a gravata e vesti o paletó.
Zangada comigo?
Eu quis.
Está, sim.
Sentou-se, pediu-me de costas o pente.
Que acenda a luz?
Não, não.
Penteava-se de olhos no chão. Depois se ajoelhou, a mão sob o sofá.
Que é?
Meu sapato.
O pé tão branco, meu anjo.
Pé mais feio!
Até bonito.
Afonso, Afonso, você casa comigo?
A estiagem debandou os corvos do telhado. Ela se ergueu, o embrulho apertado na mão.
Agora não gosta de mim.
Bobinha. Você volta?
Sim.
Quer um cigarro?
Acendi o fósforo, ela o soprou. Acendi outro, tornou a soprar.
Não gosto de cigarro. Brincadeira.
O cigarro na boca quando quis me beijar.
Mau que é. Veja, estou chorando.
Chorando nada.
Tão infeliz. Ah, se soubesse...
Agora chorava mesmo e a chuva voltou a cair.
Não chore. Que alguém ouve.
Enxugou o rosto com os dedos, foi até a porta.
Espere a chuva passar.
Já vou.
Que te acompanhe?
Não precisa.
Beijei-a contra a porta.
Mais um pouco.
É tarde. Mamãe esperando. Assim que olhe para mim ela vai saber.
Seja boba.
Basta que olhe. Basta qualquer pessoa olhe para mim.
Estou olhando e não vejo nada. Você volta? Jure que volta.
Juro.
Jurava por tudo para sair. Acendi a luz antes de abrir a porta. Espiei o corredor.
Pode sair.
Leonor afastou-se, sem olhar para trás. O embrulho verde rasgado no canto, nunca eu saberia o que era. Chegou à escada, desceu os degraus apoiando-se na parede.
Fechei a porta e olhei o cabide. Esquecera a sombrinha, iria para casa debaixo de chuva.
Abri a janela e chamei. Leonor não se voltou. Podia correr atrás dela, nada aceitaria de minhas mãos.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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