Os
helicópteros passam quase rasteiros, seguem pelo espaço das grandes
avenidas. Controlam a multidão. As pás giram com zumbido ameaçador.
Quando vejo esses besouros metálicos, me vem uma sensação
paradoxal de morte e liberdade. Carregam metralhadoras e bombas de
efeito desmoralizante.
Lançam
redes sobre ajuntamentos, expelem líquidos coloridos que paralisam,
produzem fumaça tóxica. Têm mil e uma utilidades. No entanto me
fascinam. Essa capacidade de estar acima, onipotente. Esse voo
desconjuntado de ave pré-histórica. Eles têm o poder de escapar,
partir.
Os
helicópteros são auxiliados, em seu trabalho de controle coletivo,
pelos respiradouros de gás. As bocas camufladas podem ser acionadas
eletronicamente a bordo desses aparelhos. Basta utilizar os códigos
segundo a região que estejam rondando. Os respiradouros são
terríveis.
Fiquei
sem o Sônico, mas logo apareceu alguém vendendo. Dos cantos de
portas, das bocas de lobo, esquinas, tocas, de qualquer lugar, os
camelôs ressurgem. Reencontrarão os fiscais, serão perseguidos.
Imagino, às vezes, que seja um grande jogo, gato e rato, para
afastar a monotonia.
Tudo
funciona como um ecossistema. Um moto-contínuo. Ah, o moto-contínuo
de meu parente, o Sebastião Bandeira. Pensando bem, teve gente
interessante em minha família. Até que tenho a quem puxar, com essa
cabeça fantasiosa, um pouco febril demais, me diz Adelaide.
Adelaide
me esperava à porta do prédio. Escondida no corredor de entrada,
porque não dá para facilitar, com tanta gente desconhecida e
estranha. Ainda mais ela que é desconfiada e medrosa. Adelaide se
esconde ali, esperando o carteiro. Há anos, aguarda uma carta.
– Chegou?
– Não.
A
minha pergunta é automática, como o gesto de acariciar seu ombro
esquerdo. Suas respostas também. Há anos, trocamos essas quatro
frases na porta e elas me parecem uma das provas de que há coisas
imutáveis neste mundo. No dia em que essa carta impossível chegar,
será o vazio.
Entramos.
Tomei banho, descansei. Como todos os dias. Tentei fazer tudo
normalmente, Adelaide pressente mudanças mínimas no meu modo de
ser. Pela entonação da voz sabe se estou bem, preocupado ou alegre.
Tem bom ouvido. A mesa estava posta, uma panela no fogo. Não quis me
sentar.
– Você
precisa comer.
– Não
tenho fome.
– Se
não come por causa do calor, não vai comer nunca.
Ficamos
diante da televisão, esperando o início da novela. Quando surgiram
os letreiros, mostrei o furo. Ela me olhou, inquieta. Esperando que
eu explicasse, que eu dissesse alguma coisa. Não é normal o marido
voltar para casa com um furo na mão, como se nada tivesse
acontecido.
Adelaide
começou a chorar quando me viu quieto, indiferente. E eu parecia
disposto a não explicar. Também explicar o quê? Uma coisa que eu
mesmo não entendia? Ela não é habituada a aceitar sem que digam o
porquê. Tem de ser tudo muito claro. A única exceção é para a
religião.
– Dói
muito?
– Não
dói nada.
– Foi
acidente?
– Não!
Apareceu de repente!
– Não,
Souza. Uma coisa dessas não aparece. Alguma coisa aconteceu. O que
foi?
– Nada,
estava no ônibus e a mão coçou. Quando coçou de novo, vi que o
buraco estava começando. Quando desci na cidade, o furo estava
pronto.
– O
que você está escondendo?
– Nada.
É a pura verdade, juro.
– Você
sempre me contou tudo, Souza.
Repisaríamos
a história a noite toda. Ela remoeria as mesmas perguntas. Porque
não tem sutilezas. Pensei em inventar uma desculpa, arranjar uma
história. Nem precisava ser tão verossímil, apenas algo que fosse
menos obscuro. Que tivesse uma base sólida, que parecesse palpável.
– Mas
não dói nada, nada?
– Não.
– Você
foi ao médico?
– Para
quê?
– Para
examinar isso. Quem sabe o médico tem uma explicação.
– Não
quero explicações.
– E
fica aí com esse furo?
– Fico.
Não me incomoda.
– É,
mas a mim incomoda.
– A
você?
– É,
a mim! Vou ficar andando por aí com um homem que tem um furo na mão?
O que vão dizer?
– Ora,
Adelaide. Quem nesta cidade é que vai prestar atenção num furo?
Você tem visto o que anda de gente estranha nas ruas?
– Falar
nisso, hoje vieram dois carecas horrorosos pedir esmola.
– Esmola?
Você denunciou?
– Dá
muita mão de obra.
– Você
sabe como é importante, Adelaide, essa denúncia. É para o bem
deles. O Esquema cuida.
– Estou
cheia dessa gente toda, Souza. Nem atendo mais campainha.
– Quer
dizer que têm vindo sempre? Por que não me contou? Como entram no
prédio?
– Alguém
deixa a porta aberta. Ou entram, como os ladrões entram nas casas.
Eles têm vindo todos os dias, todas as horas.
– O
Esquema não vai segurar, Adelaide. Cada dia, gente nova, diferente.
Nem sabemos de onde vem. Vi hoje um dos tais carecas. Parecia de
outro planeta. Não sei o que vai ser, a cidade não comporta mais.
Mal dá para andar.
– Fazer
o quê? Olha, com essa historiada toda, você se desviou do assunto.
E o furo?
– Já
disse. Sei tanto quanto você.
Ela
foi ao banheiro, escovou os dentes. Agora, gargareja. O gro-gro-gro
do líquido na garganta é desconsolador. Adelaide nunca dormiu sem
fazer o gargarejo com o preparado à base de groselha. Pois é,
groselha factícia, mas de cheirinho bom e fresco, como aquela de
criança.
Adelaide
se metia na cama, aroma gostoso na boca. Por instantes, todo o quarto
cheirava. Era a compensação pelo gargarejo. Tenho aqui comigo que é
por isso que todos esses anos jamais dormimos sem um bom beijo. A
groselha me tranquilizava, devolvia Adelaide tal como a conheci.
Estávamos
mudados. Velhos, habituados demais um com o outro. Vivendo
confortavelmente, sem sobressaltos, algumas emoções perdidas. Penso
que foi a malícia de Adelaide que descobriu essa groselha. Como
reação. Sabia que a sua imagem estava profundamente ligada ao
refresco.
Nos
vimos pela primeira vez numa sorveteria, em tarde de calor. Além de
haver muita gente, sempre fui estabanado. Entrei, bati em sua mão, o
refresco vermelho se espalhou pelo balcão. O cheiro ocupou tudo e
nos envolveu. Por dentro dessa nuvem de confusão, vi o sorriso.
Isso
mesmo, o sorriso dela flutuava naquele perfume de fruta. Na minha
cabeça se fundiram duas imagens, o vermelho do refresco e o branco
dos dentes. Aquele instante não se perdeu, é revivido cada noite,
nossos rostos encostados aos lençóis, o cheiro de groselha no ar, à
nossa volta.
Entrei
no banheiro, escovei os dentes. Um colírio para os olhos
congestionados. A luz do quarto apagada, Adelaide me esperava à
porta. Há trinta e dois anos, na hora de dormir, só entra junto
comigo, vou até a cama com a mão em seu ombro. Faz bem aos dois
esse gesto. Temos a nossa tradição.
Na
porta do quarto, olhei para o baú em cima do guarda-roupa. Olhei
para lá nem sei dizer por quê. Foi automático. O baú de vime já
escuro. A última vez que foi aberto, Adelaide estava grávida. Ao
menos pensávamos que estivesse. A barriga crescia, as regras foram
interrompidas, ela enjoava.
“Psicológica”,
disse o médico, e não acreditamos. Estávamos tão confiantes.
Aquele filho não era planejado, mas gostamos, fomos nos acostumando
com a ideia. Até que certa madrugada, antes do sol nascer, acordei
com o piano e a Patética. Nunca tinha visto tanto desespero
colocado dentro da música.
Nem
mesmo Beethoven teria imaginado uma Patética mais dolorida. Juro, me
deu vontade de chorar, ainda deitado. Só de ouvir os sons que vinham
pelo corredor. Pode ser que eu tivesse intuído o que significava
aquela música penosamente arrancada do piano. Uma dor viva,
penetrante.
Ela
estava à banqueta, sem barriga alguma. Não consegui entender. Algo
se rompeu em minha cabeça. De um dia para o outro, no espaço de uma
noite, a barriga desapareceu. Não havia realmente gravidez. Durante
anos pensei naquilo, me impressionava muito. Meu filho não passou de
uma bolha de ar.
Adelaide
guardava o enxoval da criança nesse baú. Tinha sido da mãe de
minha sogra, veio passando, filha para filha. Nele, Adelaide trouxe o
seu enxoval. Na semana seguinte ao casamento, ela abriu, distribuiu
tudo pelas gavetas, colocamos o baú vazio em cima do guarda-roupa.
Conservado,
envernizado, cheio de naftalina contra ratos e baratas. Foi se
enchendo de pacotes. Feitos por ela. Todos do mesmo tamanho,
amarrados do mesmo jeito, envoltos em papel-pardo. O mesmo papel que
usamos para os calendários. Eu tentava adivinhar o que havia dentro.
Não me contava.
Fora
desses tempos, era como se o baú não existisse. Não mexíamos
nele, não falávamos a respeito. Eu esquecia até que estava lá com
pacotes. Vez ou outra ficava curioso, queria saber que tipo de coisas
minha mulher estava guardando. Perguntar por que não me dizia nada.
Está
na hora de interrogá-la. Por que essa bobagem? E se fosse ciumento?
Faria um escândalo. Faria nada! Que segredos Adelaide tem? E por que
não ter algum, um pouco de um mundo só dela? Claro! Quando coloquei
a mão em seu ombro, Adelaide estremeceu. E retirou a minha mão, sem
me olhar.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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