sábado, 6 de julho de 2019

Adelaide conta como os repulsivos carecas estão invadindo o bairro, sem nenhum controle. Depois, faz gargarejo com groselha e dorme

Os helicópteros passam quase rasteiros, seguem pelo espaço das grandes avenidas. Controlam a multidão. As pás giram com zumbido ameaçador. Quando vejo esses besouros metálicos, me vem uma sensação paradoxal de morte e liberdade. Carregam metralhadoras e bombas de efeito desmoralizante.
Lançam redes sobre ajuntamentos, expelem líquidos coloridos que paralisam, produzem fumaça tóxica. Têm mil e uma utilidades. No entanto me fascinam. Essa capacidade de estar acima, onipotente. Esse voo desconjuntado de ave pré-histórica. Eles têm o poder de escapar, partir.
Os helicópteros são auxiliados, em seu trabalho de controle coletivo, pelos respiradouros de gás. As bocas camufladas podem ser acionadas eletronicamente a bordo desses aparelhos. Basta utilizar os códigos segundo a região que estejam rondando. Os respiradouros são terríveis.
Fiquei sem o Sônico, mas logo apareceu alguém vendendo. Dos cantos de portas, das bocas de lobo, esquinas, tocas, de qualquer lugar, os camelôs ressurgem. Reencontrarão os fiscais, serão perseguidos. Imagino, às vezes, que seja um grande jogo, gato e rato, para afastar a monotonia.
Tudo funciona como um ecossistema. Um moto-contínuo. Ah, o moto-contínuo de meu parente, o Sebastião Bandeira. Pensando bem, teve gente interessante em minha família. Até que tenho a quem puxar, com essa cabeça fantasiosa, um pouco febril demais, me diz Adelaide.
Adelaide me esperava à porta do prédio. Escondida no corredor de entrada, porque não dá para facilitar, com tanta gente desconhecida e estranha. Ainda mais ela que é desconfiada e medrosa. Adelaide se esconde ali, esperando o carteiro. Há anos, aguarda uma carta.
Chegou?
Não.
A minha pergunta é automática, como o gesto de acariciar seu ombro esquerdo. Suas respostas também. Há anos, trocamos essas quatro frases na porta e elas me parecem uma das provas de que há coisas imutáveis neste mundo. No dia em que essa carta impossível chegar, será o vazio.
Entramos. Tomei banho, descansei. Como todos os dias. Tentei fazer tudo normalmente, Adelaide pressente mudanças mínimas no meu modo de ser. Pela entonação da voz sabe se estou bem, preocupado ou alegre. Tem bom ouvido. A mesa estava posta, uma panela no fogo. Não quis me sentar.
Você precisa comer.
Não tenho fome.
Se não come por causa do calor, não vai comer nunca.
Ficamos diante da televisão, esperando o início da novela. Quando surgiram os letreiros, mostrei o furo. Ela me olhou, inquieta. Esperando que eu explicasse, que eu dissesse alguma coisa. Não é normal o marido voltar para casa com um furo na mão, como se nada tivesse acontecido.
Adelaide começou a chorar quando me viu quieto, indiferente. E eu parecia disposto a não explicar. Também explicar o quê? Uma coisa que eu mesmo não entendia? Ela não é habituada a aceitar sem que digam o porquê. Tem de ser tudo muito claro. A única exceção é para a religião.
Dói muito?
Não dói nada.
Foi acidente?
Não! Apareceu de repente!
Não, Souza. Uma coisa dessas não aparece. Alguma coisa aconteceu. O que foi?
Nada, estava no ônibus e a mão coçou. Quando coçou de novo, vi que o buraco estava começando. Quando desci na cidade, o furo estava pronto.
O que você está escondendo?
Nada. É a pura verdade, juro.
Você sempre me contou tudo, Souza.
Repisaríamos a história a noite toda. Ela remoeria as mesmas perguntas. Porque não tem sutilezas. Pensei em inventar uma desculpa, arranjar uma história. Nem precisava ser tão verossímil, apenas algo que fosse menos obscuro. Que tivesse uma base sólida, que parecesse palpável.
Mas não dói nada, nada?
Não.
Você foi ao médico?
Para quê?
Para examinar isso. Quem sabe o médico tem uma explicação.
Não quero explicações.
E fica aí com esse furo?
Fico. Não me incomoda.
É, mas a mim incomoda.
A você?
É, a mim! Vou ficar andando por aí com um homem que tem um furo na mão? O que vão dizer?
Ora, Adelaide. Quem nesta cidade é que vai prestar atenção num furo? Você tem visto o que anda de gente estranha nas ruas?
Falar nisso, hoje vieram dois carecas horrorosos pedir esmola.
Esmola? Você denunciou?
Dá muita mão de obra.
Você sabe como é importante, Adelaide, essa denúncia. É para o bem deles. O Esquema cuida.
Estou cheia dessa gente toda, Souza. Nem atendo mais campainha.
Quer dizer que têm vindo sempre? Por que não me contou? Como entram no prédio?
Alguém deixa a porta aberta. Ou entram, como os ladrões entram nas casas. Eles têm vindo todos os dias, todas as horas.
O Esquema não vai segurar, Adelaide. Cada dia, gente nova, diferente. Nem sabemos de onde vem. Vi hoje um dos tais carecas. Parecia de outro planeta. Não sei o que vai ser, a cidade não comporta mais. Mal dá para andar.
Fazer o quê? Olha, com essa historiada toda, você se desviou do assunto. E o furo?
Já disse. Sei tanto quanto você.
Ela foi ao banheiro, escovou os dentes. Agora, gargareja. O gro-gro-gro do líquido na garganta é desconsolador. Adelaide nunca dormiu sem fazer o gargarejo com o preparado à base de groselha. Pois é, groselha factícia, mas de cheirinho bom e fresco, como aquela de criança.
Adelaide se metia na cama, aroma gostoso na boca. Por instantes, todo o quarto cheirava. Era a compensação pelo gargarejo. Tenho aqui comigo que é por isso que todos esses anos jamais dormimos sem um bom beijo. A groselha me tranquilizava, devolvia Adelaide tal como a conheci.
Estávamos mudados. Velhos, habituados demais um com o outro. Vivendo confortavelmente, sem sobressaltos, algumas emoções perdidas. Penso que foi a malícia de Adelaide que descobriu essa groselha. Como reação. Sabia que a sua imagem estava profundamente ligada ao refresco.
Nos vimos pela primeira vez numa sorveteria, em tarde de calor. Além de haver muita gente, sempre fui estabanado. Entrei, bati em sua mão, o refresco vermelho se espalhou pelo balcão. O cheiro ocupou tudo e nos envolveu. Por dentro dessa nuvem de confusão, vi o sorriso.
Isso mesmo, o sorriso dela flutuava naquele perfume de fruta. Na minha cabeça se fundiram duas imagens, o vermelho do refresco e o branco dos dentes. Aquele instante não se perdeu, é revivido cada noite, nossos rostos encostados aos lençóis, o cheiro de groselha no ar, à nossa volta.
Entrei no banheiro, escovei os dentes. Um colírio para os olhos congestionados. A luz do quarto apagada, Adelaide me esperava à porta. Há trinta e dois anos, na hora de dormir, só entra junto comigo, vou até a cama com a mão em seu ombro. Faz bem aos dois esse gesto. Temos a nossa tradição.
Na porta do quarto, olhei para o baú em cima do guarda-roupa. Olhei para lá nem sei dizer por quê. Foi automático. O baú de vime já escuro. A última vez que foi aberto, Adelaide estava grávida. Ao menos pensávamos que estivesse. A barriga crescia, as regras foram interrompidas, ela enjoava.
Psicológica”, disse o médico, e não acreditamos. Estávamos tão confiantes. Aquele filho não era planejado, mas gostamos, fomos nos acostumando com a ideia. Até que certa madrugada, antes do sol nascer, acordei com o piano e a Patética. Nunca tinha visto tanto desespero colocado dentro da música.
Nem mesmo Beethoven teria imaginado uma Patética mais dolorida. Juro, me deu vontade de chorar, ainda deitado. Só de ouvir os sons que vinham pelo corredor. Pode ser que eu tivesse intuído o que significava aquela música penosamente arrancada do piano. Uma dor viva, penetrante.
Ela estava à banqueta, sem barriga alguma. Não consegui entender. Algo se rompeu em minha cabeça. De um dia para o outro, no espaço de uma noite, a barriga desapareceu. Não havia realmente gravidez. Durante anos pensei naquilo, me impressionava muito. Meu filho não passou de uma bolha de ar.
Adelaide guardava o enxoval da criança nesse baú. Tinha sido da mãe de minha sogra, veio passando, filha para filha. Nele, Adelaide trouxe o seu enxoval. Na semana seguinte ao casamento, ela abriu, distribuiu tudo pelas gavetas, colocamos o baú vazio em cima do guarda-roupa.
Conservado, envernizado, cheio de naftalina contra ratos e baratas. Foi se enchendo de pacotes. Feitos por ela. Todos do mesmo tamanho, amarrados do mesmo jeito, envoltos em papel-pardo. O mesmo papel que usamos para os calendários. Eu tentava adivinhar o que havia dentro. Não me contava.
Fora desses tempos, era como se o baú não existisse. Não mexíamos nele, não falávamos a respeito. Eu esquecia até que estava lá com pacotes. Vez ou outra ficava curioso, queria saber que tipo de coisas minha mulher estava guardando. Perguntar por que não me dizia nada.
Está na hora de interrogá-la. Por que essa bobagem? E se fosse ciumento? Faria um escândalo. Faria nada! Que segredos Adelaide tem? E por que não ter algum, um pouco de um mundo só dela? Claro! Quando coloquei a mão em seu ombro, Adelaide estremeceu. E retirou a minha mão, sem me olhar.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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