Como
se educa um filho num país desses? Como dizer “e eles viveram
felizes para sempre, agora dorme tranquilo, papai e mamãe tão na
sala”, quando na sala papai e mamãe não estão nada tranquilos
vendo que a história caminha para longe de um final feliz? Como
dizer “não precisa ter medo do escuro”, “monstro não existe”,
quando papai e mamãe são obrigados a sussurrar ou falar outra
língua ao conversar na frente das crianças?
“Um homem que não quis se identificar,
tio de dois mortos, um de 16 anos e outro de 18, afirmou que os
policiais esfaquearam os suspeitos depois de atirar nas pernas, para
impedir que fugissem”. “Um dos suspeitos aparece com o intestino
completamente para fora do corpo”. “O deputado estadual Rodrigo
Amorim (PSL), que mantém bom trânsito com o governador, anunciou
nesta terça que propôs homenagem ao Choque do Bope. ‘Eles
mostraram aos marginais que a polícia do Rio de Janeiro tem que ser
respeitada. Foram 13 CPFs cancelados'”.
Rodrigo Amorim é aquele que, durante a
campanha, comemorou o “cancelamento” de outro CPF, o da vereadora
Marielle Franco, quebrando a placa com seu nome. A placa quebrada,
agora emoldurada, decora o seu gabinete, como o chifre de um animal
abatido. E eu lendo pro meu filho “O Reizinho Mandão”, ensinando
que o autoritarismo destrói a autoridade. Desculpa, Ruth Rocha, mas
acho que de agora em diante embalarei o sono do meu filho com “O
Senhor das Moscas”.
Eu queria muito ter que responder
perguntas simples do tipo “Como os bebês são feitos?”, mas no
Brasil o tabu é mais embaixo. “Por que ela dorme na rua?”. “Por
que ela é pobre?”. “Por que ela não tem trabalho?”. “Por
que ela não foi pra escola?”. “Por que a mãe dela também não
foi pra escola?”. “Por que a avó dela também não foi pra
escola?”. “Por que as pessoas pobres são sempre marrons?”. O
que balbucio à guisa de resposta tem a eficácia de um saquinho de
Floc Gel sobre a lama da Vale: “Elas não são marrons, elas são
negras”.
Pra que me agachar no chão durante a
festa e explicar pacientemente ao meu filho que ele tem que emprestar
o Batman pro Guilherme “porque se todo mundo emprestar os
brinquedos pra todo mundo, todo mundo vai poder brincar com todos os
brinquedos”? Se eu fosse sincero e educasse pra realidade
brasileira e não pros meus delírios utópicos ultrapassados eu
deveria dizer 1) “Não empresta, você é maior do que o Guilherme,
empurra o Guilherme, pisa no Guilherme, cospe no Guilherme e mostra
quem manda” ou 2) “Empresta, o Guilherme é maior do que você,
se você não emprestar o Guilherme vai te empurrar, vai pisar em
você, cuspir em você e mostrar quem manda”.
A dissonância entre a realidade
brasileira e o que meu filho aprende em casa e na escola é da ordem
da psicose. Dois mais dois são quatro, nós insistimos em dizer, mas
sabemos que se você tiver os contatos certos, dois mais dois são
cinco ou quinhentos, assim como também pode ser zero ou menos mil se
você tiver nascido no lugar errado, com a cor errada, o gênero
errado, a orientação sexual errada.
Não, filho, os bons não vencem no
final. Não, os maus não serão punidos. Não, ser legal com os
outros não faz com que os outros sejam legais com você. Mas veja:
você é branco, é homem, é bem-nascido. Você não pedirá
dinheiro pelas ruas, você não terá seu CPF “cancelado” pela
polícia. Aqui, neste reino distante, tudo conflui para você chegar
a ser um reizinho mandão, um senhor das moscas com um chifre
pendurado na parede. Acho que a minha tarefa como pai é te ensinar
que este não é um final feliz.
Antônio
Prata,
in Folha
de São Paulo, 17/02/2019
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