Abram
com cuidado, muito cuidado, mas também com muitas esperanças,
Beatriz, o novo livro de Cristovão Tezza (Record). Poucas
ficções nos levam, com tanta lucidez, aos interiores do mundo
contemporâneo. Muito poucas desnudam, com arte e ferocidade, a
própria literatura – pelo menos tal qual nós hoje a praticamos.
Território
da liberdade interior, a literatura se vê envolvida por uma incômoda
camada de protocolos sociais, estratégias de marketing, interesses.
Não só os livros são atingidos, mas os próprios escritores. Estes
vestem, a contragosto, uma espécie de casca que os protege, mas que
também expõe aos efeitos da fama e da detração. Aos efeitos de
nosso inacreditável presente.
Detenho-me
nas explosivas primeiras 28 páginas de Beatriz. Elas agrupam
dois escritos fortes. Um prólogo em que Tezza, contrariando as
superstições que cercam a figura dos escritores, se desnuda diante
de seu leitor. E um primeiro relato, “Beatriz e o escritor”,
verdadeira devassa na alma enfraquecida, mas fértil, dos escritores
contemporâneos.
Salvo
exceções nobres, escritores não conseguem viver de seus direitos
autorais. Para sobreviver, cultivam uma segunda identidade, a do
performer, ou do homem que vende a si mesmo. A sociedade do
espetáculo os convoca para bienais, feiras, mesas-redondas. Ali
vende não só sua fala, mas sua imagem.
Não
é fácil sustentar o duplo papel. Ele expõe conflitos e feridas,
que Tezza encarna em seu escritor-protagonista, Paulo Donetti, o
homem que se envolve com a inquieta Beatriz. Há, sim, uma encenação
– ainda que, muitas vezes, se trate da encenação da verdade.
Quando fala de si, em uma contorção interior, o escritor fala
também de um outro – alguém que é mais efeito de sua obra do que
expressão de sua sinceridade. Em resumo: mete os pés na cisão de
que somos feitos. Expõe-se, mas também se esconde, ainda que sob a
máscara do “verdadeiro”. Atua: a literatura se transforma em uma
cena e o autor, em ator.
Já
em seu prólogo, Tezza desmascara o mito de que “a ficção fala
por si”, sob o qual tantos escritores medrosos se escondem. Verdade
insuficiente, “porque depois, nas entrevistas, (eles) tentam dizer
tudo o que disseram no livro, com aquele ar gaguejante, meio
fraudulento, de quem afinal não sabe bem o que escreveu”.
Ocorre
que, nesse gaguejar, não há propriamente uma fraude: o que se abre
é uma ferida. O Autor (figura tão festejada) não é o sujeito de
carne e osso que escreve seu relato. Ao contrário: no simples ato de
“sentar para escrever”, a ficção dele já se apossa. O Autor é
alguém que o escritor inventa para escrever em seu nome. Entre ele e
seu texto, fenda atroz, surge uma terceira figura: o narrador.
A
literatura resulta de uma experiência em abismo. Uma aventura de que
pelo menos quatro personagens participam: o Eu, o Autor, o Narrador e
o Protagonista. Terreno instável, tão propício às fraudes quanto
aos mal-entendidos. Nosso tempo – em que, diz Tezza, “ninguém
sabe mais exatamente o que é literatura” – não é, porém, um
tempo de derrota, mas de potência. É aqui, na ferida enfim rasgada,
que a literatura rascunha seu futuro.
Confessa
Tezza – o que seus relatos desmentem – que se considera “um
escritor de pouca imaginação fabular”. Sofreria da dificuldade de
chegar a personagens que “falem por si”. Mas será que tal
autonomia é possível no mundo em que vivemos? “Beatriz e o
escritor”, o relato em que o prólogo se desdobra, é a história
de um escritor, Paulo Donetti. Em uma mesa-redonda, ele despe sua
fantasia de Grande Autor e passa a falar tudo o que pensa. A
experiência de purgação, contudo, é também uma experiência de
ficção.
Esquece-se
Donetti que o Autor que ele apresenta é, ele também, uma invenção.
Ficção assinada não por um (ele), mas por vários autores, já que
os leitores também são autores dos livros que leem. Em seu corajoso
prólogo, Tezza chama Paulo Donetti de “paranoico”. Mas será? Ao
rasgar as entranhas, não estaria ele, ao contrário, acercando-se da
lucidez? É verdade: em um mundo fascinado pelas imagens, o
desnudamento sincero se parece sempre com a loucura. Não deixa de
ser – pelos riscos que inclui. O que não lhe rouba, porém, um
segundo caráter ficcional.
Em
seu surto – vamos aceitar provisoriamente isso –, Paulo Donetti
despe uma performance para vestir outra. Deixa de ser “o escritor
que faz pose” e se torna o “escritor sincero”. O caráter
moralizante da transformação é indisfarçável. Em seu monólogo,
ele busca uma regra universal. Ele quer Tudo – em um terreno, a
literatura, regido pelo Um. Sua avidez pelo Todo esmaga as
singularidades, inclusive sua própria.
Destila
desprezo pelo leitor, a quem chama de “crédulo”. Reduz seu
parceiro de mesa a simples “romancista municipal”. Transforma seu
“discurso verdadeiro” não em uma aproximação amorosa da
verdade, mas em um ataque feroz a ela. Apesar disso, diz coisas
importantes: quando afirma, por exemplo, que “escrever é sempre a
expressão de um fracasso”. Em vez de tomar, porém, a aceitação
do fracasso como uma condição da ficção, Donetti, o grande
moralista, sofre porque os escritores (ele inclusive) não são
perfeitos.
Chega
a dizer: “Se escritores fossem boas pessoas, exerceriam alguma
atividade decente”. Seu esforço de aproximação da verdade se
torna uma destruição da verdade. Chicoteia-se: “Eu errei o tom
porque estava, de fato, acreditando em cada palavra que dizia”.
Buscou a grande Verdade, mas continua a ser falso. Em nome da
perfeição inexistente, duvida de si e ataca os outros. Julga-se,
enfim, uma vítima do “pecado mortal de acreditar em si mesmo”;
não entende que esse esforço, apesar de comovente, não é garantia
da verdade.
Quando
arranca sua máscara de escritor, sob ela surge o semblante de um
moralista. Ao inventar Donetti, Tezza rasga a cortina que encobre a
solenidade da literatura. Ocorre-me o título de uma peça de teatro
em cartaz: “Te quero como queres, me queres como podes”. Ele
resume as condições em que não só escritores mas todos nós
vivemos: a insuficiência do possível. A coragem de Tezza não está
em desmascará-la, mas em aceitá-la.
José
Castello, in Sábados inquietos
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