quarta-feira, 26 de junho de 2019

Uma árvore para o Ladon Sheats…

Liquidambar

Aconteceu, faz muito tempo. A carta me chegou dos Estados Unidos. Na verdade não era uma carta: uma folha de bloco rasgada pelo meio com uma mensagem que não consegui entender. Como há muitas pessoas loucas soltas pelo mundo, pensei que se tratava de uma delas. Dois dias depois recebi carta de um amigo que dizia:
Rubem, você deve ter recebido uma carta de uma pessoa que você não conhece. Foi escrita de uma prisão. Quem a assina, Ladon Sheats, era um sólido executivo da IBM. Aí ele leu o seu livro Tomorrow’s Child. O fato é que essa leitura fez com que ele avaliasse a vida que estava vivendo. E concluiu que ser executivo da IBM não era uma razão para viver. Demitiu-se e juntou-se a um grupo de pacifistas que se dedicavam a fazer uma coisa muito simples: invadiam os lugares onde se encontravam os mísseis nucleares e simplesmente se assentavam, pacificamente. E acontecia aquilo que sabiam que iria acontecer. Eram presos. Isso aconteceu nos anos da guerra fria. Pensavam que, com esse gesto manso, estavam dando testemunho da sua fé no desarmamento. Ele lhe escreveu da prisão onde está cumprindo uma pena.”
Esse foi o início de uma comovente relação por correspondência com aquele homem singular, que eu nunca vira. Uma de suas cartas dizia:
Hoje, Rubem, é o meu último dia nessa prisão. Amanhã poderei ver as estrelas de novo. Completam-se seis meses… Começou assim: eu e meus amigos resolvemos nos assentar nos silos de ogivas nucleares, na fronteira com o Canadá. Encontram-se numa reserva florestal, lugar de beleza e paz. Pois fomos para lá e por uma semana gozamos a beleza da natureza, nadamos nos lagos, caminhamos pelas matas, observamos os animais e aves selvagens. Isso encheu a nossa alma. Passados seis dias, no domingo, em procissão e cantando hino, entramos no lugar proibido e nos assentamos nos silos. Em cinco minutos estávamos todos presos. O juiz nos condenou a um mês de prisão. Ficamos decepcionados com pena tão curta. Resolvemos repetir o que havíamos feito. E aí o juiz nos condenou a seis meses. Amanhã estarei livre – até a próxima prisão…”
O Ladon, quando não estava preso, gostava de ir para as Montanhas Rochosas, onde se encontra um mosteiro de monges trapistas, que cultivam o silêncio. Refugiava-se então, numa cabana solitária, nas alturas, onde só se ouve o barulho do vento, o pio das aves, os uivos dos animais… Numa das vezes em que estive nos Estados Unidos chamei-o na prisão onde se encontrava, ao telefone e conversamos. Foi a única vez em que ouvi a sua voz. Depois perdi contato com ele. Por dez anos não soube por onde andava e nem se estava vivo.
Ontem recebi uma carta de uma de suas amigas dizendo que o Ladon se preparava para a “Grande Viagem”. Sofre de um tumor pancrático, inoperável, e os médicos lhe dão de 3 a 9 meses de vida. Isso é o que ela diz:
Ladon tomou a decisão de viver cada dia intensamente, ao invés de tentar radioterapia, quimioterapia ou terapias alternativas… Ladon acredita que a melhor terapia é gozar a vida, amor, oração, música, riso e comida saudável. Ele nos disse: “Se Deus quiser me curar, Ela (sic) o fará. Caso contrário, tentarei morrer da mesma forma como tentei viver…”
E ela acrescenta:
Ladon me pediu para lhe pedir que se lembre dele em seus pensamentos e orações…”
Acabo de lhe enviar a seguinte carta:
3 de junho de 2002.
Meu querido, muito querido Ladon: Tantos anos se passaram… E perdi contato com você. Mas você esteve sempre no meu coração e eu o imaginava caminhando sozinho pelas montanhas, em busca de silêncio, de comunhão com Deus e com a natureza. Contei muitas vezes a estória da nossa estranha amizade – porque é estranho pensar que duas pessoas que nunca se encontraram pudessem ser tão amigas. E agora me contam que você está se preparando para o momento de ficar encantado… Foi-me dito que você tomou a decisão de viver o resto da sua vida da forma mais livre e mais corajosa. A vida é preciosa e deve ser bebida até sua última gota. Quando chegar a minha vez espero ter a sua liberdade e a sua coragem. A vida é bonita e é preciso que a morte seja bonita também. É trágico que nos dias de hoje, como resultado da parafernália médica, a morte tenha se tornado feia, solitária e amedrontadora. Um dos nossos poetas chamou a morte de “minha mais nova namorada”… Talvez ele estivesse pensando na morte como a Pietà – a morte como uma mulher que recebe o nosso corpo no seu colo.
Tenho um lugar nas montanhas. Há riachinhos, cachoeiras, árvores, pássaros de todos os tipos, de tucanos a beija-flores, e borboletas… Lá de cima eu vejo o horizonte, ao longe…Dentro de mim mora um menino. E esse menino fez um balanço numa árvore. E quando estou balançando, tentando tocar as folhas com o dedão do pé, tenho a impressão de que estou quase voando… Lá há um jardim encantado onde planto árvores para meus amigos que morrem. Já plantei minha própria árvore, pois nunca se sabe ao certo quando a nossa hora vai chegar. Todas as árvores são de florestas tropicais com uma exceção: um pinheiro canadense, nome científico liquidambar, com folhas como mãos abertas com dedos esticados. Por muito tempo procurei essa árvore, sem sucesso. Mas uma amiga me deu uma muda como presente de aniversário. Eu a plantei numa encosta de onde se vê o horizonte. Acho que ela está gostando do clima. Mas ainda não lhe dei nenhum nome. Será que você concordará se eu lhe der o nome de Ladon Sheats? Assim, quando alguém me perguntar pelas razões daquele nome, eu contarei a sua estória… E as pessoas saberão que há, nesse mundo, pessoas bonitas que tornam a vida digna de ser vivida…
Estou lhe enviando esse livro que escrevi para minha filha, quando ela tinha 3 anos. Era cedo de manhã. Eu ainda estava dormindo. Ela saiu do seu quarto, veio até o meu lado, me acordou e me perguntou: “Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?” Eu fiquei perplexo, sem palavras. Ela não havia tido nenhuma experiência com a morte. Como é que aqueles pensamentos apareceram na cabecinha dela? E então ela acrescentou: “Não chore porque eu vou abraçar você…” Essas palavras se tornaram no centro dessa estória - “A Montanha Encantada dos Gansos Selvagens”. Não importa que você não entenda português. Aceite esse livro como um sacramento de amor. Nós nos encontraremos algum dia, em algum lugar…
Seu amigo e irmão, Rubem Alves.”
Rubem Alves, in A eternidade numa hora

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