Liquidambar
Aconteceu,
faz muito tempo. A carta me chegou dos Estados Unidos. Na verdade não
era uma carta: uma folha de bloco rasgada pelo meio com uma mensagem
que não consegui entender. Como há muitas pessoas loucas soltas
pelo mundo, pensei que se tratava de uma delas. Dois dias depois
recebi carta de um amigo que dizia:
“Rubem,
você deve ter recebido uma carta de uma pessoa que você não
conhece. Foi escrita de uma prisão. Quem a assina, Ladon Sheats, era
um sólido executivo da IBM. Aí ele leu o seu livro Tomorrow’s
Child. O fato é que essa leitura fez com que ele avaliasse a
vida que estava vivendo. E concluiu que ser executivo da IBM não era
uma razão para viver. Demitiu-se e juntou-se a um grupo de
pacifistas que se dedicavam a fazer uma coisa muito simples: invadiam
os lugares onde se encontravam os mísseis nucleares e simplesmente
se assentavam, pacificamente. E acontecia aquilo que sabiam que iria
acontecer. Eram presos. Isso aconteceu nos anos da guerra fria.
Pensavam que, com esse gesto manso, estavam dando testemunho da sua
fé no desarmamento. Ele lhe escreveu da prisão onde está cumprindo
uma pena.”
Esse foi o início de uma comovente
relação por correspondência com aquele homem singular, que eu
nunca vira. Uma de suas cartas dizia:
“Hoje, Rubem, é o meu último dia
nessa prisão. Amanhã poderei ver as estrelas de novo. Completam-se
seis meses… Começou assim: eu e meus amigos resolvemos nos
assentar nos silos de ogivas nucleares, na fronteira com o Canadá.
Encontram-se numa reserva florestal, lugar de beleza e paz. Pois
fomos para lá e por uma semana gozamos a beleza da natureza, nadamos
nos lagos, caminhamos pelas matas, observamos os animais e aves
selvagens. Isso encheu a nossa alma. Passados seis dias, no domingo,
em procissão e cantando hino, entramos no lugar proibido e nos
assentamos nos silos. Em cinco minutos estávamos todos presos. O
juiz nos condenou a um mês de prisão. Ficamos decepcionados com
pena tão curta. Resolvemos repetir o que havíamos feito. E aí o
juiz nos condenou a seis meses. Amanhã estarei livre – até a
próxima prisão…”
O Ladon, quando não estava preso,
gostava de ir para as Montanhas Rochosas, onde se encontra um
mosteiro de monges trapistas, que cultivam o silêncio. Refugiava-se
então, numa cabana solitária, nas alturas, onde só se ouve o
barulho do vento, o pio das aves, os uivos dos animais… Numa das
vezes em que estive nos Estados Unidos chamei-o na prisão onde se
encontrava, ao telefone e conversamos. Foi a única vez em que ouvi a
sua voz. Depois perdi contato com ele. Por dez anos não soube por
onde andava e nem se estava vivo.
Ontem recebi uma carta de uma de suas
amigas dizendo que o Ladon se preparava para a “Grande Viagem”.
Sofre de um tumor pancrático, inoperável, e os médicos lhe dão de
3 a 9 meses de vida. Isso é o que ela diz:
“Ladon tomou a decisão de viver cada
dia intensamente, ao invés de tentar radioterapia, quimioterapia ou
terapias alternativas… Ladon acredita que a melhor terapia é gozar
a vida, amor, oração, música, riso e comida saudável. Ele nos
disse: “Se Deus quiser me curar, Ela (sic) o fará. Caso contrário,
tentarei morrer da mesma forma como tentei viver…”
E ela acrescenta:
“Ladon me pediu para lhe pedir que se
lembre dele em seus pensamentos e orações…”
Acabo de lhe enviar a seguinte carta:
“3 de junho de 2002.
Meu querido, muito querido Ladon: Tantos
anos se passaram… E perdi contato com você. Mas você esteve
sempre no meu coração e eu o imaginava caminhando sozinho pelas
montanhas, em busca de silêncio, de comunhão com Deus e com a
natureza. Contei muitas vezes a estória da nossa estranha amizade –
porque é estranho pensar que duas pessoas que nunca se encontraram
pudessem ser tão amigas. E agora me contam que você está se
preparando para o momento de ficar encantado… Foi-me dito que você
tomou a decisão de viver o resto da sua vida da forma mais livre e
mais corajosa. A vida é preciosa e deve ser bebida até sua última
gota. Quando chegar a minha vez espero ter a sua liberdade e a sua
coragem. A vida é bonita e é preciso que a morte seja bonita
também. É trágico que nos dias de hoje, como resultado da
parafernália médica, a morte tenha se tornado feia, solitária e
amedrontadora. Um dos nossos poetas chamou a morte de “minha mais
nova namorada”… Talvez ele estivesse pensando na morte como a
Pietà – a morte como uma mulher que recebe o nosso corpo no
seu colo.
Tenho um lugar nas montanhas. Há
riachinhos, cachoeiras, árvores, pássaros de todos os tipos, de
tucanos a beija-flores, e borboletas… Lá de cima eu vejo o
horizonte, ao longe…Dentro de mim mora um menino. E esse menino fez
um balanço numa árvore. E quando estou balançando, tentando tocar
as folhas com o dedão do pé, tenho a impressão de que estou quase
voando… Lá há um jardim encantado onde planto árvores para meus
amigos que morrem. Já plantei minha própria árvore, pois nunca se
sabe ao certo quando a nossa hora vai chegar. Todas as árvores são
de florestas tropicais com uma exceção: um pinheiro canadense, nome
científico liquidambar, com folhas como mãos abertas com
dedos esticados. Por muito tempo procurei essa árvore, sem sucesso.
Mas uma amiga me deu uma muda como presente de aniversário. Eu a
plantei numa encosta de onde se vê o horizonte. Acho que ela está
gostando do clima. Mas ainda não lhe dei nenhum nome. Será que você
concordará se eu lhe der o nome de Ladon Sheats? Assim, quando
alguém me perguntar pelas razões daquele nome, eu contarei a sua
estória… E as pessoas saberão que há, nesse mundo, pessoas
bonitas que tornam a vida digna de ser vivida…
Estou lhe enviando esse livro que escrevi
para minha filha, quando ela tinha 3 anos. Era cedo de manhã. Eu
ainda estava dormindo. Ela saiu do seu quarto, veio até o meu lado,
me acordou e me perguntou: “Papai, quando você morrer você vai
sentir saudades?” Eu fiquei perplexo, sem palavras. Ela não havia
tido nenhuma experiência com a morte. Como é que aqueles
pensamentos apareceram na cabecinha dela? E então ela acrescentou:
“Não chore porque eu vou abraçar você…” Essas palavras se
tornaram no centro dessa estória - “A Montanha Encantada dos
Gansos Selvagens”. Não importa que você não entenda português.
Aceite esse livro como um sacramento de amor. Nós nos encontraremos
algum dia, em algum lugar…
Seu amigo e irmão, Rubem Alves.”
Rubem Alves, in A eternidade
numa hora
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