quarta-feira, 26 de junho de 2019

H2O

Sete horas da manhã. Campainha na porta.
- Dez minutos de água, pessoal!
É a voz do seu Abel, o porteiro do meu edifício.
Água quer dizer banho. Há dois dias este corpinho só vê fricções de água-de-colônia. A ablução é um tanto ou quanto matinal demais, mas não há remédio: o homem é um escravo do quarto elemento, de que é ele próprio o composto químico: H-O-N-C. Os dois primeiros em combinação, dão água: H20. É ela!
A correria é infernal, enche-se desde o tanque de lavar roupa até os copos da casa. A lavação da louça suja é feita a toda, como para ganhar um campeonato. Ouvem-se profusas descargas de latrinas, torneiras escorrem ruidosamente, enchendo recipientes dos quais a banheira é o mais capaz. A barba é feita em dois minutos, havendo eu, muito de indústria, deixado pincel e aparelho adrede preparados. Depois vem o banho, às carreiras. Mas a verdade é que o tempo útil voa impressentido. Depois de bem ensaboado, o chuveiro começa a minguar assustadoramente, acabando por estar com um sinistro gorgolejo.
O nome feio anda pela casa, atravessa paredes, vai encontrar eco em outros apartamentos, desdobra-se até longínquos bairros, toma a cidade inteira. De repente todo mundo põe-se a berrá-lo em uníssono. Ele é a expressão viva da realidade carioca. Aliás, um grande general de Napoleão já o usara em circunstâncias talvez não tão dramáticas, mas com vigor. Um homem ensaboado não se pode dizer que valha por dois, porque é o ser mais infeliz e ridículo da criação. Tem de se haver com o sistema da cuia. Seu corpo esfria, ele fica com um ar de pinto molhado. É absolutamente lamentável.
Ontem à noite, o café foi feito com água mineral. Ficou com um gosto meio velhaco, mas não há de ser nada. É de esperar, contudo, que o recurso não se tenha de estender ao próprio banho, porque com a mineral a Cr$ 180, e sendo necessários uns cem litros para encher uma banheira, sai cada banho a 18 contos - o que torna a prática proibitiva para a classe média, ficando acessível apenas a uns poucos homens ricos e bem nutridos, que aliás devem ficar umas gracinhas dentro de um banho de água mineral, agitando os braços gordos e soltando milhões de borbulhas....
Vinicius de Moraes, in Prosa

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