Você
eu não sei, mas um dos meus terrores é o teatro interativo. A
possibilidade de acabar no palco, ou de alguém do palco acabar no
meu colo. Sei que a interação com o público é uma antiga tradição
teatral. No teatro grego, não era raro alguém da platéia avisar ao
Édipo que aquela era a sua mãe, forçando o ator a se fingir de
surdo para não estragar a trama. No teatro elisabetano, a plateia
assistia às apresentações de pé, comendo e bebendo e interferindo
na peça com palpites ou com empadões bem mirados. Contam que alguns
vilões de Shakespeare chegavam a interromper suas falas para
responder aos insultos mais pesados do público, embora não haja
registro de que algum tenha usado sua espada para silenciar alguém.
Em
todos esses casos, a iniciativa era da plateia. Foi com o music-hall
que a participação do público começou a ser incentivada do palco.
Mas a não ser por uma eventual corista querendo tirá-lo para dançar
ou alguma piada dirigida à sua careca, os espectadores da primeira
fila não tinham muito o que temer.
Certamente
nada parecido com o que viria com o teatro moderno, quando as
primeiras filas se transformaram em áreas de exposição ao vexame —
quando não à matéria orgânica. Quando, por assim dizer, o palco
contra-atacou.
Ir
ao teatro virou uma tortura e as primeiras filas um tormento. Você
nunca sabe o que espirrará em você, ou se a mulher nua que sentará
no seu colo não começará a morder sua orelha, ou não será um
homem. Ou se você não será arrastado para o palco, despido e
lambido por todo o elenco.
Dei
para pedir lugar nas últimas filas do teatro, longe das ameaças. E
se me avisam que eu terei a visão do palco obstruída, digo
“melhor!”. Não ver o palco significa que não me verão do
palco.
De
certa forma, a experiência teatral de um espectador moderno repete
toda a história do teatro, como o feto repete toda a história da
espécie no ventre. Nada se parece mais com o teatro de antigamente
do que o teatro infantil, onde também há tramas básicas, comédia
ingênua, exageros trágicos e catarse. As crianças interferem na
história como o público de antigamente, vaiando os vilões,
incentivando os heróis, avisando aos berros que o lobo vai atacar e,
não raro, subindo no palco para impedir o ataque. E por mais que
façam, não são punidos. Continuam sendo “amiguinhos” e
convidados a voltar por atores agradecidos, que muitas vezes precisam
se controlar para não esgoelar o mais próximo, assim como eram
toleradas as intromissões do público antigo. Quando fica adulto, o
espectador aceita os abusos do teatro adulto como uma forma de
contrição: ele merece qualquer vexame, de tanto que chateou quando
era um espectador infantil. A agressividade do teatro moderno com o
público, na verdade, é vingança.
Quem
é tímido não tem nada a ver com tudo isto. Quando era pequeno, era
dos poucos que ficava quieto no seu lugar do teatro, salvo por um ou
outro sobressalto com o lobo. E no entanto, hoje, muitas vezes, é
ele o escolhido para a interação, e para viver, sem merecer, o seu
pior pesadelo. Não que ele não tente de tudo para evitar o vexame.
Para não se arriscar, pede um lugar nas últimas filas. Especifica:
quer um lugar ruim, de preferência sem visão do palco, para também
não ser visto do palco. Mesmo assim, fica nervoso. Quando batem no
seu ombro, ele grita, “Eu não! Eu não!”, até se dar conta de
que é apenas alguém querendo entrar na sua fila e que a peça ainda
nem começou. Quando começa a peça, ele fica preparado. E ao menor
sinal de interação — nem que seja um ator que se aproxime muito
do proscênio ou olhe para a plateia de um modo suspeito — ele não
hesita. Foge para a rua. Correndo, pois há sempre a possibilidade de
o elenco vir atrás dele.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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