Onze
mil e setecentos dias intocados. Empoeirados, amarelados, não
utilizados, conservados. Naquele cômodo, entro uma vez por ano.
Nunca tivemos empregada. Adelaide sempre fez tudo, dizia ironicamente
que era a sua missão. Só há pouco consegui contratar uma faxineira
semanal.
E
isso porque empregados ganham pouquíssimo. As pessoas trabalham em
troca de um prato de comida, um copo de água por dia. Não querem
dinheiro, só comer e beber. Aí está a grande dificuldade. Se
aceitassem dinheiro, tudo bem. Mas comida? E que dizer de água
então?
Os
dias guardados. Armazenados. Neles, nenhuma marca. Nem sequer rasura.
Conjunto, soma de todos os nossos instantes. Agora sei. Cada momento
era uma antecedência para nós. Uma espera que se substituía
infinitamente. Vivíamos na ansiedade pela ocasião que haveria de
chegar.
Assim,
nossa vida se distendia como um elástico. Esticava-se ao ponto
máximo, atingindo o estado de tensão, incômoda inquietação.
Quando o dia se acabava, a esperança nascia outra vez dentro de nós.
Aguardávamos os instantes que fariam o dia seguinte repleto-vazio.
Instantes
despidos daquilo que faltava. Algo que necessitávamos e não íamos
procurar. Ficávamos na expectativa de que acontecesse. Havia uma
falta. Não somente dentro do tempo. Porém um vazio real, concreto.
Lancinante. Em cada canto da casa se projetava a sua sombra.
Compacta.
Fomos
preenchendo o apartamento com objetos. Até que ele se assemelhou a
um bazar de artigos únicos, invendáveis. Cristaleiras cheias de
compoteiras, xícaras, saleiros, copos, taças e licoreiras. Paredes
com quadros, reproduções, flâmulas, santos, retratos, relógios
parados.
Vasos,
bibelôs, criados-mudos, mesinhas de centro, cinzeiros limpos,
estatuetas, imagens, porta-retratos, toalhinhas de renda, tapetes de
barbante, caixinhas decoradas, vidros vazios, garrafas cortadas,
pesos de papel, abajures, lâmpadas votivas, cestinhas de costura
decoradas.
E
calendários. Dois ou três em cada cômodo, escolhidos por ela.
Brindes ganhos nos Superpostos de Distribuição Alimentar. Comprados
na igreja. Folhinhas que nos ensinavam vários costumes obsoletos.
Como a boa época para se plantar e colher. Ou que previam o bom e o
mau tempo.
Depois
de guardar os pacotes, eu vinha olhar, uma a uma, as folhinhas novas.
Estampas coloridas. Moças colhendo café. Laranjais em fila indiana
sobre a colina. Trigais dourados ao sol, homens com ceifadeiras.
Casas à beira de lagos, incêndios na floresta. Tudo tão antigo.
Índios,
onças, gatos na cesta, pai preto, anjos velando meninos à borda de
abismos. Tudo, menos moças nuas. Dessas que se viam nas oficinas
mecânicas. Loiras diáfanas, morenas rechonchudas, sorrindo em
tangas mínimas. Contemplava rapidamente, teria o ano todo para
admirá-las.
– Tem
um fio de cabelo branco. O que é isso, paizinho? Mal fez cinquenta
anos. Seu pai com noventa ainda tem a cabeça preta!
A
mãe dela chamava o marido de pai. Mas nós? Onde está nosso filho?
Nem sei se tivemos. Pode parecer um absurdo, mas é verdade. Podem
acreditar. Pela minha honra. Tudo se confunde na minha cabeça, o que
foi e o que deveria ser. O que era realmente e aquilo que eu gostaria
que fosse.
– Souza,
sonhei outra vez.
– De
novo? O mesmo sonho?
– Mudou
um pouco. Não foram as sirenes que não me deixaram dormir. Foi o
sonho. Tão nítido. Real como aquela noite no porto.
Não.
Adelaide, não. Basta! Já temos o inferno no coração. Há coisas
que devem ser esquecidas. Vamos sepultá-las. É preciso. Combinamos
um dia não falar nunca mais sobre o assunto. Afinal, para nós,
viver sempre foi tão calmo, reconfortante. Éramos felizes. Ao
menos, parecia.
– Souza,
foi impressionante. O navio afundava num mar terrível. Não havia
tempestade alguma, nem vento, só o silêncio. Sabe o que me
congelava? O ruído das lâmpadas quentes estourando quando tocavam a
água fria. Os cordões de lâmpadas se arrebentavam, soltando uma
fumacinha branca. O mar foi ficando escuro, escuro, até que a última
lâmpada se apagou. Eu sem enxergar nada, só ouvindo aquelas
explosões. Nem mesmo um gemido. Elas morreram todas, não morreram,
Souza? Você vai ter de me contar uma hora. Será que não era o
barulho das cabecinhas estourando?
– Não
seja louca, Adelaide. Como a cabeça delas ia estourar?
– Criança
tem a cabeça tão fraquinha.
– É
tudo sonho, Adelaide, não tem nada a ver. Se acalme.
– Não
posso sossegar, e você também não, até que eu saiba.
O
navio, nossa aflição, estava esquecido. Imaginei que jamais
retornasse. Antes, mais novos, tínhamos capacidade para suportar.
Adelaide, principalmente. Está cansada, acho que doente.
Desassossegada. Para nós, o tempo não ajudou a esquecer, ao
contrário, alimentou lembranças.
Quatro
para as oito; se não corro, perco o ônibus. Não fosse esta perna,
eu teria uma bicicleta, como todo mundo. Uma artrose no joelho me
impede de pedalar. Tive de passar por dezenas de exames, centenas de
gabinetes, paguei gorjetas, conheci todos os pequenos subornos.
Escorreguei
fichas de água nas mãos de funcionários. Fichas que me fizeram
falta. Transferi cotas de alimentos, e esperei até que saísse a
praticamente impossível autorização para o ônibus. Ganhei a ficha
especial de circulação para o S-7.58. O desgraçado é pontual, até
irrita.
Abro
a porta, o bafo quente vem do corredor. Já estou melado, quando
chegar ao centro estarei em sopa. Como todo mundo. A vizinha varre o
chão, furiosamente. Como se fosse possível lutar contra a poeira
negra, a imundície. Não fornecem água para lavar as partes comuns.
Vou
pela escada. Há muito desisti desse emperrado elevador solitário,
mambembe. Serve trinta andares, cento e cinquenta apartamentos.
Somente os velhos e inválidos esperam por esse aparelho
desconjuntado, ameaçador. O corredor da entrada atulhado de lixo.
Uma vergonha.
Lixo
que aumenta dia a dia. Não podemos atirar na rua, e não há onde
depositar. O caminhão carrega o que pode quando passa. Se passa. Vem
tão cheio que leva muito pouco. Ratos dilaceram os sacos, o lixo se
esparrama, espalha um fedor insuportável. Ora, um cheiro a mais.
Nem
sei por que pagamos zelador, ele nunca está, se esquece de ligar o
Sônico Antirratos. Um zelador hoje em dia precisa ser político,
negociar com os Homens dos Caminhões de Lixo, com os Civiltares de
Segurança, dialogar habilmente com Fornecedores Oficiais de Água.
A
barbearia está abrindo. Antigamente, havia neste hall lojinhas
minúsculas, bonitas. Existia até um café, com toalhas xadrez, chás
e tortas, sonhos e bolos, sorvetes, água gelada, refrigerantes e
sucos. Fecharam, as vitrines estão cerradas com placas de plástico
pregadas aos batentes.
Lacrado
por placas pregadas por fora. Assim me sinto. Contando os dias,
detalhando meus passos. Sensação de que me observo em microscópio,
aumentado dezenas de vezes. Quantas vezes não reconheço este Souza
que desliza num líquido viscoso. Sou, todavia não pode ser eu.
No
corredor, somente o barbeiro resistiu. Sei lá como, ou por quê. Não
entendo. Os velhos descem de vez em quando para uma barba, um cabelo.
Através dos vidros encardidos, mal se percebe o salão. Cumprimento
com um aceno, Prata me faz um sinal, gosta de uma prosinha.
Inevitável, indolor.
– Tem
água esta semana?
– E
eu sei? Pergunte ao distribuidor.
– É
que você tem aquele sobrinho.
– Não
faço a mínima ideia.
– Desorganizaram
as entregas, ou aumentaram os prazos.
Coceira
nas mãos. Arde e no lugar está uma pequena depressão, como se eu
tivesse apertado uma bola de gude por muito tempo. Fiquei passando o
dedo pela depressão, sentindo cócegas. Será uma picada de inseto?
Não senti nada. Medo. Anda aparecendo cada bicho estranho!
O
caminhão descarrega refrigerantes factícios no bar. Portanto um mês
se passou. Durante as festas o tempo voa. Besteira, o que me
interessa a corrida do tempo? Não existe nada a fazer com ele. Que
importa a velocidade se já não tenho uso para minha vida. Quem tem?
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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