Fotograma do filme As vinhas da ira
— Vocês
podem ficar trabalhando e ganhando dinheiro até a gente se encontrar
outra vez — disse Tom. — Imaginem só se a gente ficasse aqui,
todo mundo sem fazer nada! Nem água tem neste lugar e o carro não
pode andar deste jeito. Mas imaginem vocês todos, lá na Califórnia,
trabalhando. Arrumam dinheiro e vão ter até a sua própria casa,
talvez. Que é que acha, Casy? Quer ficar comigo, pra me ajudar?
— Faço
pra vocês o que quiserem — disse Casy. — Vocês me trouxeram e
eu faço tudo que me pedirem, seja o que for.
— É,
mas o senhor vai ter que ficar de barriga pra cima e ter a cara cheia
de óleo, se ficar aqui me ajudando — disse Tom.
— Tanto
faz.
O
pai disse:
— Bom,
se já tá decidido, então é melhor a gente ir saindo logo. Quem
sabe, podemos fazer até uns cento e cinquenta quilômetros inda
hoje?
— Eu
não vou — disse a mãe, postando-se à frente dele.
— Como
não vem? Que história é essa, agora? Cê tem que vir! A gente
precisa de ocê. Quem vai olhar pela família? — o pai estava se
zangando.
A
mãe aproximou-se do carro e procurou alguma coisa embaixo do banco
traseiro. Pegou o macaco e ficou a brandi-lo rapidamente.
— Não
vou — repetiu. — E eu digo que ocê vem! Isso já está decidido.
Os
lábios da mãe apertaram-se. Ela disse em voz surda:
— Só
saio daqui arrastada. — E brandiu o macaco. — E isso não te
convém, ouviu? Eu não permito que ninguém me toque, e também não
vou chorar nem rogar nada a ninguém. Parto pra cima de ocês,
entendeu? E eu não acho que ocê vai bater em mim. Se me tocar com
um só dedo, eu juro que espero até ocê sentar ou deitar pra te
arrumar com um balde na cabeça. Juro por tudo que é sagrado!
O
pai olhou, desconcertado, o grupo. — Ela tá maluca — falou. —
Nunca vi ela assim.
Ruthie
soltou um riso agudo.
O
macaco girou firmemente nas mãos da mãe.
— Vem,
procê ver — disse ela. — Cê já decidiu, já? Então
experimenta me bater. Experimenta só! Eu diss’que não vou, e se
ocê me obrigar a ir, nunca vai dormir sossegado, te garanto! Vou
esperar, esperar até que ocê feche os olhos e aí te racho a
cabeça!
— Mas
que mulher danada! — murmurou o pai. — E nem é tão moça assim.
Imagina se fosse!
O
grupo todo acompanhou interessado a revolta. Olhavam o pai, esperando
a sua explosão de cólera. Olhavam-lhe as mãos fouxas, à espera de
que elas se erguessem em fúria. E o pai não se encolerizava e suas
mãos continuavam frouxas. Num instante o grupo soube que a mãe
tinha vencido. E a mãe também o sabia.
— Mãe,
mas que é isso? — Tom perguntou. — A senhora agora está contra
nós?
Abrandou-se
o rosto da mãe, mas seus olhos ainda relampejavam.
— Ocê
está agindo sem pensar — falou. — Que é que nos resta na vida?
Nada, a não ser a nossa família. Mal a gente deixou a nossa terra,
e o avô morreu. E agora... agora ocê quer que a gente se separe
também.
Tom
gritou:
— Mãe,
a gente não ia se separar, não. Vamo alcançar logo a senhora.
A
mãe brandiu o macaco.
— Imagina
que a gente esteja acampada em algum lugar e vocês não nos vejam e
passem de largo? Imagina mesmo que a gente chegue lá na Califórnia,
como é que vocês vão nos encontrar? Como é que nós poderemos
deixar recado pra vocês, dizendo onde estamos? Temos uma caminhada
bem dura ainda. A avó está doente. Ela tá deitada lá no caminhão;
pode ser que não dure muito tempo mais, também. Se morrer, aí
temos que enterrar ela, que nem o avô. Ela não aguenta mais, tá no
fim. A caminhada é muito dura ainda.
Tio
John disse:
— Mas
a gente podia já começar a ganhar dinheiro. Podia até economizar
alguma coisa, até que os outros chegassem.
Os
olhares do grupo todo convergiram para a mãe. Ela era a força.
Estava com o controle da situação.
— Dinheiro
que a gente ganhasse desse jeito não prestava pra nada — disse
ela. — Tudo que nos resta é a nossa família, é a nossa união. A
gente é que nem uma manada de bois, que se une quando aparecem os
lobos. Não tenho medo de nada, enquanto estivermos todos juntos. Não
quero que a gente se separe. Os Wilson estão conosco, e também o
reverendo. Se eles quiserem ir embora, nada posso fazer. Mas com a
minha família é diferente: se a minha família quiser se separar,
então vai ver o que é uma besta enfurecida com isso aqui nas mãos!
— Sua voz era fria e decisiva.
Tom
disse em tom apaziguador:
— Mãe,
a gente não pode acampar aqui. Não tem água. Nem tem sombra
direito, e a avó precisa de um lugar que tenha bastante sombra.
— Bom
— disse a mãe —, então vamos continuar a viagem e parar no
primeiro lugar que tiver água e sombra. Depois o caminhão volta pra
levar vocês na cidade, onde podem comprar a peça que falta, e então
a gente continua a viagem. A pé, cê não vai poder andar nesse sol
brabo, e também não quero que ocê fique aqui sozinho. Se te
acontecer alguma coisa, não vai ter ninguém pra tomar conta de
você.
Tom
repuxou os lábios e tornou a baixá-los sobre os dentes. Abriu as
mãos desconsoladamente e deixou-as cair junto ao corpo.
— Pai
— disse —, se o senhor se jogar sobre ela de um lado e eu de
outro e os outros por trás, e se a avó se pendurar no pescoço
dela, talvez aí a gente domine a mãe, sem que ela derrube uns dois
ou três com o macaco. Mas se o senhor não quiser ficar com a cabeça
rachada, é melhor fazer como a mãe quer. Deus do céu, uma pessoa
que sabe o que quer pode dominar uma porção de gente. A senhora
ganhou, mãe. E agora bota de lado esse macaco, antes que machuque
alguém.
A
mãe olhou atônita o pedaço de ferro. Suas mãos tremiam. Deixou
que a arma caísse ao chão, e Tom levantou-a com o maior cuidado e
depositou-a no carro, e disse:
— Pai,
é melhor o senhor voltar para o seu lugar. Al, cê leva o pessoal no
caminhão até um bom lugar, depois volta pra cá e eu e o pregador,
durante esse tempo, vamos desmontar o mancal. Aí, se for possível,
a gente vai até Santa Rosa pra ver se pode arranjar um mancal novo.
Talvez a gente tenha sorte, porque é noite de sábado. Trata de
andar depressa. Deixa aqui a chave inglesa e a torquês do caminhão.
— Ele meteu a mão debaixo do carro e apalpou o cárter cheio de
graxa. — E olha aqui, deixa também esse velho balde aí, que é
pra botar o óleo. Não podemos perder esse óleo todo.
Al
entregou-lhe o balde e Tom colocou-o sob o carro e abriu a tampa do
tanque de óleo com a ajuda da torquês. O óleo negro escorreu-lhe
pelo braço, enquanto desatarraxava a tampa com os dedos, e depois o
jorro negro foi atingindo silenciosamente o fundo do balde. Al reuniu
a família no caminhão em menos tempo que o necessário para que o
balde ficasse cheio até a metade. Tom, rosto sujo de óleo, olhou
por entre as rodas.
— Volta
depressa, ouviu? — disse. E estava soltando os parafusos do cárter
quando o caminhão começou a afastar-se lentamente e atingia a
faixa, após alguns solavancos no terreno acidentado da margem da
estrada, e desaparecia. Tom foi afrouxando os parafusos com
suavidade.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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