Foto:
Lucas Jackson/ Reuters
Era
o que ele estudava. “A estrutura, quer dizer, a estrutura” —
ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo.
Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é
mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho.
Película e oco. “A estrutura da bolha de sabão, compreende?”
Não o compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal
da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava
os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de
cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o
processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham
rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o
peito. Então eu jogava longe canudo e caneca. Para recomeçar no dia
seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? “A
estrutura” — ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e
fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô!
a paciência. A paixão. No escuro eu sentia essa paixão contornando
sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu
fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na
superfície da água mas sem se comprometer com o fundo, divagações
à flor da pele, ô! amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de
transparências e membranas, condenado à ruptura. Ainda fechei a
janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela
avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava.
Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando
ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: “Vocês já se
conheciam?” Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas
gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos
num bar e seus olhos de egípcia se retraíam apertados. A fumaça,
pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos
de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou,
mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa.
Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a
estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim? Mistérios, eu
disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de ideias,
peças soltas de um jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.
Convidaram-me
e sentei, os joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena
enfeixando copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados
no fundo do copo, ele podia estudar a estrutura do gelo, não era
mais fácil? Mas ela queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Uma
antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia,
onde? Por aí, numa praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi tomando forma
e transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da pintura
dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da
mesa, pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de
cabeça: “Estou com dor de cabeça”, repetiu não sei quantas
vezes. Uma dor fulgurante que começava na nuca e se irradiava até a
testa, na altura das sobrancelhas. Empurrou o copo de uísque.
“Fulgurante.” Empurrou para trás a cadeira e antes que
empurrasse a mesa ele pediu a conta. Noutra ocasião a gente poderia
se ver, de acordo? Sim, noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele
pensou em me beijar de leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu
o tranquilizei, está bem, querido, está tudo bem, já entendi. Tomo
um táxi, vá depressa, vá. Quando me voltei, dobravam a esquina.
Que palavras estariam dizendo enquanto dobravam a esquina? Fingi me
interessar pela valise de plástico de xadrez vermelho, estava diante
de uma vitrina de valises. Me vi pálida no vidro. Mas como era
possível. Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um amigo,
fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo.
Felicíssimo, repeti quando no dia seguinte cedo ele telefonou para
explicar. Cortei a explicação com o felicíssimo e lá do outro
lado da linha senti-o rir como uma bolha de sabão seria capaz de
rir. A única coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de
assunto com o licoroso pressentimento de que ela ouvia na extensão,
oh, o teatro. A poesia. Então ela desligou. O segundo encontro foi
numa exposição de pintura. No começo aquela cordialidade. A boca
pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de que tinha gostado muito.
Não ficamos distantes dela nem cinco minutos. Quando voltamos, os
olhos já estavam reduzidos aos dois riscos. Passou a mão na nuca.
Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me antes da dor fulgurante.
Vai virar sinusite, pensei. A sinusite do ciúme, bom nome para um
quadro ou ensaio.
“Ele
está doente, sabia? Aquele cara que estuda bolhas, não é seu
amigo?” Em redor, a massa fervilhante de gente, música. Calor.
Quem é que está doente? Eu perguntei. Sabia perfeitamente que se
tratava dele mas precisei perguntar de novo, é preciso perguntar
uma, duas vezes para ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele
que estuda essa frescura da bolha, não era meu amigo? Pois estava
muito doente, quem contou foi a própria mulher, bonita, sem dúvida,
mas um tanto grosseira, fora casada com o primo de um amigo, um
industrial meio fascista que veio para cá com passaporte falso, até
a Interpol já estava avisada, durante a guerra se associou com um
tipo que se dizia conde italiano mas não passava de um
contrabandista. Estendi a mão e agarrei seu braço porque a
ramificação da conversa se alastrava pelas veredas, mal podia
vislumbrar o desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos,
croquetes pisados, palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa
até a porta da rua, espera! eu disse. Espera.
Mas
que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de uísque oscilou
perigosamente acima do nível das nossas cabeças. Os copos
tilintaram na inclinação para a direita, para a esquerda,
deslizando num só bloco na dança de um convés na tempestade. O que
tinha? O homem bebeu metade do copo antes de responder: não sabia os
detalhes e nem se interessara em saber, afinal, a única coisa gozada
era um cara estudar a estrutura da bolha, mas que ideia! Tirei-lhe o
copo e bebi devagar o resto do uísque com o cubo de gelo colado ao
meu lábio, queimando. Não ele, meu Deus. Não ele, eu repeti.
Embora grave, custosamente minha voz varou todas as camadas do meu
peito até tocar no fundo onde as pontas todas acabam por dar, que
nome tinha? Esse fundo, perguntei e fiquei sorrindo para o homem e
seu espanto. Expliquei-lhe que era o jogo que eu costumava jogar com
ele, com esse meu amigo, o físico. O informante riu. “Juro que
nunca pensei que fosse encontrar no mundo um cara que estudasse um
troço desses”, resmungou ele voltando-se rápido para apanhar mais
dois copos na bandeja, ô! tão longe ia a bandeja e tudo o mais,
fazia quanto tempo? “Me diga uma coisa, vocês não viveram
juntos?” — lembrou-se o homem de perguntar. Peguei no ar o copo
borrifando na tormenta. Estava nua na praia. Mais ou menos, respondi.
Mais ou menos eu disse ao motorista que perguntou se eu sabia onde
ficava essa rua. Tinha pensado em pedir notícias por telefone mas a
extensão me travou. E agora ela abria a porta, bem-humorada.
Contente de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu penteado
despenteado. Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai começar.
Fulgurante.
“Foi
mesmo um grande susto” — ela disse. “Mas passou, ele está
ótimo ou quase — acrescentou levantando a voz. Do quarto ele
poderia nos ouvir se quisesse. Não perguntei nada.
A
casa. Aparentemente, não mudara, mas reparando melhor, tinha menos
livros. Mais cheiros. Flores de perfume ativo no vaso, óleos
perfumados nos móveis. E seu próprio perfume. Objetos frívolos —
os múltiplos — substituindo em profusão os únicos, aqueles que
ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a
enquanto me mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou
no hospital. E a fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca
descontraída. Ainda não.
“Você
poderia ter se levantado, hein, meu amor? Mas anda muito mimado”,
disse ela quando entramos no quarto. E começou a contar muito
animada a história de um ladrão que entrara pelo porão da casa ao
lado, “a casa da mãezinha”, acrescentou afagando os pés dele
debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos
berros pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão
e na véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei
de todos, lembra, amor? O amor estava de chambre verde, recostado na
cama cheia de almofadas. As mãos branquíssimas descansando
entrelaçadas na altura do peito. Ao lado, um livro aberto e cujo
título deixei para ler depois e não fiquei sabendo. Ele mostrou
interesse pelo caso do ladrão mas estava distante do ladrão, de mim
e dela. De quando em quando me olhava interrogativo, sugerindo
lembranças mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi
delicadíssimo. Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu
chambre largo demais? Era devido àquelas dobras todas que fiquei com
a impressão de que emagrecera? Duas vezes empalideceu, ficou quase
lívido.
Comecei
a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro? Acendi um e ainda a
sensação aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que estava
errado ali? Na hora da pílula lilás ela foi buscar o copo d’água
e então ele me olhou lá do seu mundo de estruturas. Bolhas. Por um
momento relaxei completamente: não sei onde está, mas sei que não
está, eu disse e ele perguntou, “Jogar?” Rimos um para o outro.
“Engole,
amor, engole” — pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se
para mim, “preciso ir aqui na casa da mamãezinha e minha empregada
está fora, você não se importa em ficar mais um pouco? Não demoro
muito, a casa é ao lado”, acrescentou. Ofereceu-me uísque, não
queria mesmo? Se quisesse, estava tudo na copa, uísque, gelo,
ficasse à vontade. O telefone tocando será que eu podia?...
Saiu
e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando,
ô! Deus.
Agora
eu sabia que ele ia morrer.
Lygia
Fagundes Telles, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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