quarta-feira, 8 de maio de 2019

Agora é que são elas (trecho do capítulo 3)

1

Aqui, ainda dá pra ver o cigarro por acender em minha mão esquerda. Sou aquele mais magrinho ali no fundo da poltrona verde-musgo, com cara de hipopótamo abatido. Ao meu lado, o telefone nas mãos do mordomo (naquele tempo, a gente chamava garçons de mordomos: moravam em casa, nunca faziam cara feia e descendiam sempre de uma tradicional família de mordomos).
Da esquerda para a direita, inúmeros nomes ilustres.
Sentado no meio, o fotógrafo dirige a cena, sem se dar conta que a máquina estava fotografando sozinha.
Atrás, na parede, o relógio marca meia-noite e quinze.
Na foto, não saíram: o notável clitóris da Condessa Vronsky, as marcas de varíola do Coronel Hermógenes, boa parte das terras do Conglomerado União, representado no evento por seu vice-presidente, e o sorriso da cabeça de javali sobre a lareira está um pouco forçado, não passando, como se percebe, de uma reles contrafação do sorriso usado por Gary Cooper naquele filme de Howard Hawks, como é mesmo o nome, meu Deus, como a memória é solúvel em álcool!
E Norma? Cadê Norma? Sua ausência grita nesta foto como o mais agudo ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh que olhos humanos já ouviram.
A foto também não registra o cheiro de queimado que senti, desde o começo, mas, bem... Tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar.

2

TUDO TINHA MUDADO. E uma angústia deste tamanho começou a tomar conta.
Um desassossego, que botou no chão, diante de mim, o ovo de uma pergunta: que é que esta festa está comemorando?
Quando me disseram para vir, só disseram, uma festa. E eu vim sem saber o que se celebra.
A ideia de uma festa sem objeto, uma festa que não comemora nada, me pareceu tão absurda quanto, sei lá, quanto a súbita visão de uma coisa em si. Ora, conforme o professor Propp, meu analista, as coisas em si só existem na imaginação. Ora, ora, não era o caso desta festa, coisa que todo mundo vai poder comprovar a seguir.
Casamento, não era. Faltava no ar aquele clima venéreo, venusiano, dos casamentos, onde todo mundo ficava olhando para os noivos, viajando nas sacanagens que eles logo vão estar praticando, todo mundo vê nas bochechas vermelhas da noiva o fogo da expectativa de dali a pouco estar levando um apaixonado caralho na buceta, no nervosismo do noivo, aquela pergunta clássica: por que é que esse bando de chatos não dá o fora logo pra eu poder comer esta mulher em paz? Não, não havia esse clima. Olhei para o alto, e girei o olhar. Não havia cupidos voando em volta da mesa.
Busquei outros sinais, sinais de qualquer um desses acontecimentos que vão da vida até a morte, batizados, bar mitzvah, noivados, bodas de prata, colação de grau, exéquias, velórios, guardamentos.
Nenhum sinal. Perguntei ao vestido das mulheres, a seus penteados renascentistas, e nada.
Não é do meu feitio suportar muito tempo coisas que eu não entendo. Esses lustres, esses candelabros, essa luz toda não me merecem. Minha integridade exigia uma medida enérgica, minha honra tinha que ser lavada em distância.
Levantei da poltrona verde-musgo e dourado.
Deixei para trás o gratuito cacarejar das damas presentes, e me encaminhei para a porta.
Saí da casa, e entrei no vento, caminhando em direção ao carro.
Tive que manobrar muito para me desvencilhar de todas aquelas máquinas caríssimas como seus donos e donas.
Lancei um olhar, não sei se de desprezo ou de despeito, para aquele imenso casarão iluminado no meio do mato, onde rolava uma festa que não me queria.
Peguei a estrada, e tomei a direção da cidade.
Quando consegui estabilizar minhas emoções e atingi aquele estado meio neutro, meio mecânico, que os carros exigem dos seus motoristas, algo entre o sono e a extrema vigília, nesse momento, a tempestade caiu. E veio com tudo.
Tive que parar à margem da estrada, esperando passar. Passar a chuva. Passar o tempo. Passar a maldita vontade de voltar.
Apanhei um cigarro. Mas cadê o isqueiro? Tinha certeza de ter deixado aqui a caixa de fósforos de papel daquele hotel.
Nada. Eu estava sem fogo. E tive que me resignar.
Foi principalmente esta falta de fogo que me fez lembrar Norma.
E só então me dei conta que não conseguia lembrar das feições do seu rosto, nem da cor dos cabelos. Nem saberia dizer se era jovem ou madura.
Dos outros convivas eu lembrava com nitidez, a memória, dizia o professor Propp, é a minha grande virtude, e, por isso, a fonte de todos os meus males.
Propp sempre me diz:
Esquece, esquece mais. Esquecer faz bem.
Eu prometo me lembrar disso. E ele diz:
Está vendo? Já está lembrando de novo.
Contra o bloco nítido daqueles convivas todos, dos quais eu lembrava cada detalhe, a figura de Norma se destacava como uma massa de amnésia. Devia estar muito distraído quando fiquei vidrado nela.
Não sabia quem era, mulher de quem, comida de quem, quem pagava seus luxos, a que casas, a que fortunas estava ligado seu destino.
Que será que fazia? Exercia a caridade? Atacava os viandantes à noite? Desenhava modas? Tocava a 7 a Sonata de Chopin no piano? Cavalgava aos domingos? Assistia filmes proibidos em seções privadas? Batia no marido? Açoitava os criados? Colecionava amantes? Frequentava igrejas, capelas, terreiros?
Todas essas perguntas empalideciam diante de uma: volto ou não volto? Dei meia-volta, e voltei para casa.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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