sexta-feira, 10 de maio de 2019

A nativa Josie Bliss

Minha vida oficial funcionava uma só vez cada três meses quando arribava um barco de Calcutá que transportava parafina sólida e grandes caixas de chá para o Chile. Febrilmente eu devia timbrar e assinar documentos. Logo viriam outros três meses de inação e de contemplação ermitã de mercados e templos. Esta é a época mais dolorosa de minha poesia.
A rua era minha religião. A rua birmanesa, a cidade chinesa com seus teatros ao ar livre e seus dragões de papel e suas esplêndidas lanternas; a rua hindu, a mais humilde, com seus templos que eram comércio de uma casta e a gente pobre prosternada do lado de fora, no barro; os mercados onde as folhas de bétel levantavam-se em pirâmides verdes como montanhas de malaquita; as casas de pássaros, os lugares de venda de feras e pássaros selvagens; as ruas retorcidas pelas quais transitavam as birmanesas flexíveis com um comprido charuto na boca, tudo isso me absorvia e ia me submergindo pouco a pouco no sortilégio da vida real.
As castas tinham classificado a população nativa como num coliseu de galerias superpostas, em cujo topo sentavam-se os deuses. Os ingleses mantinham por sua vez sua escala de castas que ia desde o pequeno balconista, passava pelos profissionais e intelectuais, continuava com os exportadores e culminava com o cume da magnificência, no qual sentavam-se comodamente os aristocratas do Civil Service e os banqueiros do empire.
Estes dois mundos não se tocavam. A gente do país não podia entrar nos lugares destinados aos ingleses e os ingleses viviam alheios à palpitação do país. Tal situação me trouxe dificuldades. Meus amigos britânicos me viram no veículo denominado gharry, carrinho especializado em rolantes e efêmeros encontros galantes, e me advertiram amavelmente que um cônsul como eu não devia usar esses veículos por motivo algum. Também me intimaram a não sentar num restaurante persa, lugar cheio de vida onde eu tomava o melhor chá do mundo em pequenas taças transparentes. Foram as últimas admoestações. Depois deixaram de me cumprimentar.
Senti-me feliz com o boicote. Aqueles europeus preconceituosos não eram muito interessantes e convenhamos que, afinal de contas, eu não tinha vindo ao Oriente para conviver com colonizadores em trânsito mas sim com o espírito antigo daquele mundo, com aquela grande e desventurada família humana. Adentrei-me tanto na alma e na vida dessa gente que me enamorei de uma nativa. Vestia-se como uma inglesa e seu nome de guerra era Josie Bliss. Mas na intimidade de sua casa, que logo compartilhei, despojava-se dos vestidos e do nome para usar seu deslumbrante sarong e seu recôndito nome birmanês.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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