domingo, 7 de abril de 2019

Um perroquet amazone

Neste inverno do ano da França no Brasil me lembrei do papagaio Bonpland, parente ancestral de Loulou, o famoso perroquet amazone do conto “Um coração simples”, de Flaubert.
Antes do último sopro de vida, Félicité, a protagonista desse conto, “acreditou ver nos céus entreabertos um papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça”. Essa visão alucinante transforma o papagaio empalhado na imagem do Espírito Santo. É um momento de “sensualidade mística”, de pacificação depois de meio século de vida sofrida da pobre Félicité.
Bonpland não teve o dom de virar nenhuma divindade, ele foi apenas um amigo conterrâneo. Eu o trouxe de Brasília, onde ele reclamava do ar seco e do excesso de verde da capital. Não o verde da vegetação, que ainda era coberta de poeira vermelha, e sim o verde-oliva, uma cor onipresente e assustadora, para mim e para o jovem Bonpland.
Mas lembro que o louro gostou de São Paulo, comia caqui e banana com um apetite voraz, e, quando me via triste e cansado nas noites que eu estudava para o vestibular, ele gritava: “Alors, mon copain, on chante quelque chose?”.
Isso mesmo, leitor. Era um papagaio afrancesado, porque pertencera à minha avó, que se comunicava com ele em francês nas manhãs manauaras. Quando a matriarca soube que eu gostava de Bonpland, me disse: “Então leva esse bicho para Brasília. Tenho mais dois no quintal”.
Não se adaptou a Brasília, passava o dia calado, bicava sem vontade uma fruta, franzia a testa quando eu saía de casa e dormia tanto que parecia uma ave deprimida. Quando perguntei se ele queria voltar para o Amazonas, respondeu com ar indeciso: “Pas encore”. A mesma pergunta lhe fiz em São Paulo, e sua resposta foi: “Pas de tout”.
Eu o levava para passear na praça da República e no Jardim da Aclimação. Na manhã de um sábado, quando nós dois andávamos — ele sempre no meu ombro — na Barão de Itapetininga, entramos na Livraria Francesa. Bonpland deu um show para os livreiros. Disse aos gritos as frases em francês que ele sabia de cor, frases curtas que lembravam a escrita de Camus, e não frases caudalosas, sinuosas e labirínticas, à la Proust.
Bonpland preferia a concisão ao jorro verbal e à hipérbole, preferia a brevidade à ênfase, e isso foi, para mim, uma lição de estilo. No fim do verão, foi uma lição de vida. Eu ainda não conhecia ninguém, falava pouco, era um vestibulando sem vocação profissional, um provinciano meio perdido numa cidade desconhecida, que, naquela época, me parecia hostil. Bonpland era uma espécie de cão fiel, minúsculo, tagarela. Um cãozinho verde, alado. Quando eu me preparava para sair do quarto, ele protestava com alaridos agressivos. Meus vizinhos da pensão se assustavam com a histeria da ave, os outros vestibulandos reclamavam do estardalhaço, então eu repreendia o bichinho, dizia com firmeza em francês: “Fica quieto, Bonpland”. E ele calava. Mas, na rua, me arrependia de ter ralhado com ele e, quando voltava para o quarto, Bonpland se fazia de difícil, dava as costas para mim, dormia ou fingia dormir mais cedo. Por vingança, me acordava às cinco da manhã, gritando: “Putain, il fait beau, il fait beau”. E nem tinha amanhecido. Eu o chamava de crápula, papagaio besta, que me deixasse dormir. Mas não adiantava, a ladainha persistia, e eu ia tomar café. Vivemos meses assim, entre birras e carinhos, e quando a primeira rajada de frio chegou, Bonpland curvou a cabeça, as penas eriçadas, os olhinhos tristes. Era uma ave solar, o frio o deprimia, talvez o fizesse sofrer.
Duas vezes fugiu do quarto, com a esperança de sentir o calor do Amazonas. Na primeira fuga foi encontrado por um velho nissei, que apareceu na pensão com a ave numa gaiola de bambu.
Papagaio triste, né?”
Concordei. E agradeci àquele homem generoso.
A segunda escapada me deu trabalho: ele subiu até o alto de uma sibipiruna numa pracinha da Liberdade e ficou empoleirado por várias horas. Juntou gente para vê-lo. Algumas pessoas me julgaram louco, porque eu gritava em francês com a cabeça erguida para o céu; tive que explicar que meu papagaio era bilíngue e esnobe, e fora acostumado a ouvir carões em francês. Uma francesa ouviu perplexa a conversa em sua língua materna, quis comprar o papagaio e levá-lo para Marselha. Neguei com veemência. E quando ela desatou a falar em francês, tentando seduzir a ave, eis que Bonpland saltitou de galho em galho até cair no meu ombro. Pôs o bico no meu pescoço e fez uns dengos exagerados.
A francesa entendeu que era um caso de amor.
O frio da última semana de junho foi fatal. No dia 24, ele amanheceu sem apetite, e do bico escorria um líquido viscoso. Não comeu nada e andava de banda, arrastando-se com esforço. Tentei conversar com ele, mas ficou totalmente mudo, com os olhinhos fechados. Ia levá-lo ao veterinário, mas morreu no dia 26 de junho, há exatos 39 anos.
Felizmente eu já tinha bons amigos. Dois deles, Arrigo e Eliete, lamentaram a morte desse papagaio bilíngue e até entoaram uma balada quando ele foi enterrado ao pé de uma jabuticabeira do quintal da pensão. Não é uma árvore do Amazonas, mas todas as árvores são belas. Além disso, Bonpland bem que gostava de bicar jabuticabas.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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