Leio
num jornal de bastante circulação na capital da República este
anúncio curioso em letras grandes: “Intelectual sem emprego.
Amadeu Amaral Júnior , jornalista desempregado, aceita esmolas,
donativos, roupa velha, pão dormido...”. Sinto um arrepio e
acompanho de longe os diferentes gestos e frases que essa publicação
naturalmente provocaria entre as diversas espécies de leitores —
razões espalhadas e incompletas, fragmentos de verdades
contraditórias. E, como os outros leitores, penso coisas
inconciliáveis, deixo escapar, num espanto verdadeiro, algumas
exclamações de sentido vário.
A
primeira ideia que me chega é desfavorável a Amadeu Amaral Júnior
homem de letras, agora inúteis: acho que ele procedeu mal expondo
com franqueza as suas necessidades. Evidentemente esse apelo à
caridade que se imprime nos diários traz prejuízo à numerosa e
vaga classe dos intelectuais. Afinal que vem a ser isso? Quais são
os membros dessa classe? Os que escrevem para se livrar do tédio,
investigam questões difíceis e levantam a cabeça — ou os que
produzem artigos de encomenda, atrapalham-se nas dívidas e olham o
chão com desgosto, porque os buracos dos sapatos insubstituíveis
aumentam?
Amadeu
Amaral Júnior, articulista sem trabalho, não pertence ao primeiro
grupo, é claro. Mas o público ignora essas diferenças. Pois um
sujeito que escreve declara em anúncio que tem fome e anda com as
calças furadas? Ninguém pergunta donde veio Amadeu Amaral Júnior ,
que fez, que ideia sustentou ou combateu. Ninguém pergunta se ele
tem ideias. Amadeu Amaral Júnior aparece como escritor, num canto de
jornal, pedindo esmolas, porque tem o estômago vazio e a camisa em
tiras. É horrível.
— Literatura!
Boceja um funcionário de subúrbio.
Na
opinião dele, um escritor não possui estômago nem camisa. O
escritor é um símbolo. E o país necessita de símbolos. Amadeu
Amaral Júnior, esse homem louro e fichado, é um símbolo. Não
deveria trazer-nos o espetáculo das suas misérias: sapatos
estragados e fundilhos rotos, incompatíveis com a profissão de
símbolo.
Os
meus sentimentos brigam, uma grande piedade me atira a Amadeu Amaral
Júnior. Agora não julgo que ele tenha procedido mal. Vejo-o
desocupado, trocando as pernas pelas calçadas, forjando à toa
projetos irrealizáveis, rondando as mesas dos cafés sem poder
sentar-se. Os níqueis se sumiram e é preciso não ampliar o rasgão
das calças. Pobre Amadeu Amaral Júnior. Em casa, na casa pior que a
cadeia, no quarto escuro da pensão desconhecida, talvez use aquelas
medonhas cuecas pretas que vestia há dois anos, passe as noites
caminhando como um sonâmbulo ou compondo, para não perder o hábito,
dezenas de crônicas que ficam inéditas ou não representam valor.
Refletindo,
digo comigo que o jornalista não foi impudente exibindo-se assim
cheio de precisões, com os cotovelos roídos e as bainhas das calças
esfiapadas. É possível que ele tenha sido impelido por um excesso
de amor-próprio, uma vaidade imensa que os fiapos das bainhas e as
manchas do casaco irritam. Comparando-se a outros que estão livres
dessas inconveniências, reputa-se acima de muitos — e publica o
seu escandaloso pedido lembrando-se de tipos ilustres que mendigaram.
Considera-se vítima duma injustiça. O anúncio barulhento não é,
pois, declaração de insuficiência do autor, é grito de protesto,
ataque à sociedade que não compreende. Amadeu Amaral Júnior nos
aparece como criança zangada que não pode sofrer em silêncio, bate
o pé e deseja que todos conheçam a sua zanga.
Se
ele dispusesse duma coluna de jornal a sua pobreza seria menor e
revelar-se-ia sob forma artística; não dispondo, redige com raiva o
anúncio espalhafatoso. O seu ofício é redigir, não sabe fazer
outra coisa e não quer ficar de braços cruzados. Lança a queixa
violenta, que, pelo menos durante alguns dias, chamará para ele a
atenção do público.
Enfim
o procedimento de Amadeu Amaral Júnior mostra coragem. Supomos a
princípio que ele não está com a cabeça regulando bem e acabamos
reconhecendo que o seu ato não foi tão desarrazoado como parecia. O
que há é que não estamos habituados a ler coisas desse gênero.
Mas se todos os literatos fossem francos como Amadeu Amaral Júnior,
quantos pedidos de roupa velha, níqueis e pão duro surgiriam nas
folhas! Se elas quisessem publicar isso de graça, naturalmente.
Graciliano
Ramos, in Revista Esfera, Rio de Janeiro, ano 1, nº 1,
maio de 1938
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