As escadarias da Igreja da Penha, no Rio de Janeiro
Eu
sou um sujeito que, modéstia à parte, sempre deu sorte aos outros
(viva, minha avozinha diria: “Meu filho, enquanto você viver não
faltará quem o elogie...”). Menina que me namorava casava logo.
Amigo que estudava comigo, acabava primeiro da turma. Sem embargo, há
duas coisas com relação às quais sinto que exerço um certo
pé-frio: viagem de avião e esse negócio de ser padrinho. No
primeiro caso o assunto pode ser considerado controverso, de vez que,
num terrível desastre de avião que tive, saí perfeitamente ileso,
e numa pane subsequente, em companhia de Alex Viany, Luís Alípio de
Barros e Alberto Cavalcanti, nosso Beechcraft, enguiçado em seus
dois únicos motores, conseguiu no entanto pegar um campinho
interditado em Canavieiras, na Bahia, onde pousou galhardamente, para
gáudio de todos, exceto Cavalcanti, que dormia como um justo.
Mas
no segundo caso é batata. Afilhado meu morre em boas condições, em
período que varia de um mês a dois anos. Embora não seja
supersticioso, o meu coeficiente de afilhados mortos é meio velhaco,
o que me faz hoje em dia declinar delicadamente da honra, quando se
apresenta o caso. O que me faz pensar naquela vez em que fui batizar
meu último afilhado na Igreja da Penha, há coisa de uns vinte anos.
Éramos
umas cinco ou seis pessoas, todos parentes, e subimos em boa forma os
trezentos e não sei mais quantos degraus da igrejinha, eu meio
céptico com relação à minha nova investidura, mas no fundo
tentando me convencer de que a morte de meus dois afilhados
anteriores fora mera obra do acaso. Conosco ia Leonor, uma pretinha
de uns cinco anos, cria da casa de meus avós paternos.
Leonor
era como um brinquedo para nós da família. Pintávamos com ela e a
adorávamos, pois era danada de bonitinha, com as trancinhas
espetadas e os dentinhos muito brancos no rosto feliz. Para mim
Leonor exercia uma função que considero básica e pela qual lhe
pagava quatrocentos réis, dos grandes, de cada vez: coçar-me as
costas e os pés. Sim, para mim cosquinha nas costas e nos pés vem
praticamente em terceiro lugar, logo depois dos prazeres da boa mesa;
e se algum dia me virem atropelado na rua, sofrendo dores, que haja
uma alma caridosa para me coçar os pés e eu morrerei contente.
Mas
voltando à Penha: uma vez findo o batizado, saímos para o sol claro
e nos dispusemos a efetuar a longa descida de volta. A Penha, como é
sabido, tem uma extensa e suave rampa de degraus curtos que cobrem a
maior parte do trajeto, ao fim da qual segue-se um lance abrupto.
Vínhamos com cuidado ao lado do pai com a criança ao colo, o olho
baixo para evitar alguma queda. Mas não Leonor! Leonor vinha
brincando como um diabrete que era, pulando os degraus de dois em
dois, a fazer travessuras contra as quais nós inutilmente a
advertimos.
Foi
dito e feito. Com a brincadeira de pular os degraus de dois em dois,
Leonor ganhou momentum e quando se viu ela os estava pulando
de três em três, de quatro em quatro e de cinco em cinco. E lá se
foi a pretinha Penha abaixo, os braços em pânico, lutando para
manter o equilíbrio e a gritar como uma possessa.
Nós
nos deixamos estar, brancos. Ela ia morrer, não tinha dúvida. Se
rolasse, ia ser um trambolhão só por ali abaixo até o lance
abrupto, e pronto. Se conseguisse se manter, o mínimo que lhe
poderia acontecer seria levantar voo quando chegasse ao tal lance,
considerada a velocidade em que descia. E lá ia ela, seus gritos se
distanciando mais e mais, os bracinhos se agitando no ar, em sua
incontrolável carreira pela longa rampa luminosa.
Salvou-a
um herói que quase no fim do primeiro lance pôs-se em sua frente,
rolando um para cada lado. Não houve senão pequenas escoriações.
Nós a sacudíamos muito, para tirá-la do trauma nervoso em que a
deixara o tremendo susto passado. De pretinha, Leonor ficara
cinzenta. Seus dentinhos batiam incrivelmente e seus olhos pareciam
duas bolas brancas no negro do rosto. Quando conseguiu falar, a única
coisa que sabia repetir era: “Virge Nossa Senhora! Virge Nossa
Senhora!”
Foi
o último milagre da Penha de que tive notícia.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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