1
Me
levou até um descampado, levantou a mão para cima apontando o
formigar de estrelas, limpo depois da chuva.
— Aqui,
ela decretou, e nos sentamos na grama molhada.
Entendia
de estrelas mais que eu, que queria, um dia, ser pago para saber
delas.
— Aquela
é Mizar, na constelação da Ursa Maior.
Eu
repetia, extasiado:
— Mizar,
na Ursa Maior.
— Aquela
é a Achernar Austral, a alfa na constelação de Erídano.
— Achernar,
eu repetia.
— Adelbaran,
Arcturus, Pólux, Canopus, Prócyon, Antares...
O
dedinho percorria o céu, tim-tim... por tim-tim, denunciando aqueles
mundos enormes, maiores que o sol.
— Contar
estrelas dá berruga no dedo, eu falei.
De
repente, ela apontou o dedo, o braço tremendo como um galho
surpreendido pelo vento.
— Está
vendo?, é a Pólux Boreal, a alfa da constelação de Gêmeos. Foi
lá que a festa começou.
2
E
começou a conversar com elas.
— Oi,
Andrômeda! Como você está bonita hoje! Que tal, os warhoos
conseguiram vencer os povos gasosos do planeta Smargh? E os pantanais
de Kolúlu, continuam produzindo gronfos? Aposto que a terra de Naid
ainda não, bem, você sabe.
Moveu
o dedinho e:
— Betelgeuse,
que vergonha! Você podia estar mais brilhante hoje. Mas como é que
você poderia com todos aqueles proctores enfristulando você? Tenho
andado tão triste desde que os churrs mertriaram toda a tua
tenoctília...
Achei
tudo aquilo perfeitamente natural, como o pedaço de doce que ela me
estendeu com seus dedinhos de contar estrelas, como se me oferecesse
Mizar, Altair ou Arcturus.
— Quer?
Masquei
o doce lembrando daquela vez, há milhões de anos atrás, quando
olhei estrelas com Norma Propp, e a gente chorou, e aquilo tudo.
Cuspi
o doce, me lembrando que detesto doce, e me deu uma vontade
desesperada de beber, beber pesado, e acabar com tudo aquilo de
uma vez.
Levantei,
alisei a roupa e comuniquei:
— Vou
lá dentro apanhar uma bebida. Fique aí que eu já volto.
— Você
não vai escapar de mim tão fácil.
3
Quando
cheguei no salão, o pau comia. Ainda deu tempo de ver um garçom
descendo a bandeja de salgadinhos na cabeça careca de um senhor que
segurava pelo pescoço o meio palmo de língua de um rapazinho que
esperneava como um frango. Pendurado no lustre, o dono da casa se
balançava até cair num bolo de gente, dando porradas e pontapés.
As damas presentes lançavam altos brados, como as fêmeas dos
babuínos, quando o bando é atacado pelo leopardo, no meio de uma
tempestade. Choviam copos, pratos, vasos, pedaços de bolo, pastéis,
perucas, sapatos, dentaduras, cigarreiras de prata, isqueiros,
relógios, colares de pérola cruzavam os ares como boleadeiras,
todos os insultos e pragas tinham saído de dentro do inferno
daquelas almas penadas.
Já
entrei dando cacete. Depois de uma rasteira num desabusado que
avançava para mim, empurrei uns dois, acertei um direto em cima do
olho de um outro, e chutei a cara daquele paciente do professor Propp
que gritava sempre:
— Eu
digo a palavra! Eu digo a palavra!
Eu
tinha uma missão pela frente e a cumpriria nem que fosse com sangue
pelos joelhos: tinha que chegar até um copo de gim-tônica.
Num
clic, tudo parou. A pancadaria cessou, as pessoas começaram a se
limpar, a pedir desculpas uns aos outros, as senhoras voltaram.
E
por toda a sala se ouviam:
— O
senhor esteve ótimo.
— Grande
porrada a sua.
— Espero
contar com seu soco na cara na próxima.
— Disponha.
O senhor também bate muito bem.
Por
todo o campo de ruínas, os criados juntavam coisas, amontoavam
pratos quebrados, reacomodavam as flores amarfanhadas nos vasos, uns
já varriam.
Procurei
a causa daquele cessar-fogo instantâneo.
No
alto da escada, ela.
Norma
começou a descer, degrau após degrau, saboreando cada degrau como
quem deglute uma fina iguaria. Tinha posto um vestido de gala, desses
de cantoras e atrizes de antigamente. E sorria, democrática, para
todos os lados. A sala logo está recomposta, pronta para ouvir. Um
que outro criado ainda dava jeito num cantinho mais convulsionado. A
distinta plateia ficou distinta de novo, sentando quietinha, nos
sofás, nas poltronas, nas almofadas, todos os olhares em Norma,
todos se esforçando por produzir o silêncio que ela merecia, um
silêncio de vinte e quatro quilates. Norma avançou até o meio da
sala. E então foi aquele negócio. Começou com “Until The Real
Thing Comes Along”, da Ella Fitzgerald, e foi embora cantando,
cantando tudo. Então, ouvi na plena luz dos lustres e candelabros
aquela voz que eu tinha ouvido (ou tinha pensado ouvir?) na noite
passada, quando voltei para a festa, durante a tempestade, na casa
vazia, só eu e o criado, e eu tive aquele sonho, se é que sonho foi
(e eu posso provar que não foi). De repente, alguma coisa começou a
mudar. A voz de Norma começou a acelerar como uma gravação que
ganha mais e mais rotações por segundo. Eu sabia! Eu sabia!
4
TUDO
ESTAVA MUDANDO. Algo de maligno naquela casa impedia que as coisas
permanecessem como estavam. E senti de novo aquele cheiro de
queimado, enquanto socorriam Norma que, durante um agudo mais
lancinante, teve um desfalecimento, e foi caindo, caindo lentamente
nos braços de vários circunstantes, que acudiram solícitos.
Desmaiada,
os cabelos soltos caindo para o chão, Norma foi levada nos braços
pelo dono da festa até uma porta atrás do salão, e desapareceram,
seguidos por vários homens e mulheres, que cochichavam como durante
uma missa.
Olhei
para a cara dos presentes. Todos tinham mudado. Os rostos tinham
adquirido uma expressão perversa, até a luz parecia ter mudado, e o
silêncio, depois da voz de Norma, era quase insuportável.
Então,
o mordomo começou a anunciar a cada grupo, em cada canto, com toda a
polidez:
— Está
na hora, senhor. Minhas senhoras, está na hora.
Solenemente,
todos foram se levantando, ajeitando as roupas e caminhando, sem
pressa, para a porta por onde tinham passado Norma, nos braços do
dono da casa e os outros.
Me
levantei também, e ia começar a acompanhar o séquito quando alguma
coisa em mim me disse, eu podia escapar daquilo tudo, e eu
tinha ficado de dar um telefonema antes de sair da cidade para um
amigo qualquer, desmarcando um compromisso.
Pedi
um telefone ao mordomo e disquei o número. E a voz que atendeu ao
meu alô só respondeu:
— Os
warhoos venceram os seres gasosos dos pântanos de Achernar, e quem
estiborna agora são os comários de Quadrak. Depois, silêncio.
Olhei, e os últimos convivas sumiam pela porta por onde tinha saído
Norma, nos braços do dono da casa. Olhei em volta, para o salão
vazio, lustres e candelabros luzindo para ninguém.
Me
apressei e fui atrás. Eu não perderia aquilo por nada deste mundo.
Fosse lá o que fosse.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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