terça-feira, 9 de abril de 2019

Agora é que são elas (capítulo 13)

1

Me levou até um descampado, levantou a mão para cima apontando o formigar de estrelas, limpo depois da chuva.
Aqui, ela decretou, e nos sentamos na grama molhada.
Entendia de estrelas mais que eu, que queria, um dia, ser pago para saber delas.
Aquela é Mizar, na constelação da Ursa Maior.
Eu repetia, extasiado:
Mizar, na Ursa Maior.
Aquela é a Achernar Austral, a alfa na constelação de Erídano.
Achernar, eu repetia.
Adelbaran, Arcturus, Pólux, Canopus, Prócyon, Antares...
O dedinho percorria o céu, tim-tim... por tim-tim, denunciando aqueles mundos enormes, maiores que o sol.
Contar estrelas dá berruga no dedo, eu falei.
De repente, ela apontou o dedo, o braço tremendo como um galho surpreendido pelo vento.
Está vendo?, é a Pólux Boreal, a alfa da constelação de Gêmeos. Foi que a festa começou.

2

E começou a conversar com elas.
Oi, Andrômeda! Como você está bonita hoje! Que tal, os warhoos conseguiram vencer os povos gasosos do planeta Smargh? E os pantanais de Kolúlu, continuam produzindo gronfos? Aposto que a terra de Naid ainda não, bem, você sabe.
Moveu o dedinho e:
Betelgeuse, que vergonha! Você podia estar mais brilhante hoje. Mas como é que você poderia com todos aqueles proctores enfristulando você? Tenho andado tão triste desde que os churrs mertriaram toda a tua tenoctília...
Achei tudo aquilo perfeitamente natural, como o pedaço de doce que ela me estendeu com seus dedinhos de contar estrelas, como se me oferecesse Mizar, Altair ou Arcturus.
Quer?
Masquei o doce lembrando daquela vez, há milhões de anos atrás, quando olhei estrelas com Norma Propp, e a gente chorou, e aquilo tudo.
Cuspi o doce, me lembrando que detesto doce, e me deu uma vontade desesperada de beber, beber pesado, e acabar com tudo aquilo de uma vez.
Levantei, alisei a roupa e comuniquei:
Vou lá dentro apanhar uma bebida. Fique aí que eu já volto.
Você não vai escapar de mim tão fácil.

3

Quando cheguei no salão, o pau comia. Ainda deu tempo de ver um garçom descendo a bandeja de salgadinhos na cabeça careca de um senhor que segurava pelo pescoço o meio palmo de língua de um rapazinho que esperneava como um frango. Pendurado no lustre, o dono da casa se balançava até cair num bolo de gente, dando porradas e pontapés. As damas presentes lançavam altos brados, como as fêmeas dos babuínos, quando o bando é atacado pelo leopardo, no meio de uma tempestade. Choviam copos, pratos, vasos, pedaços de bolo, pastéis, perucas, sapatos, dentaduras, cigarreiras de prata, isqueiros, relógios, colares de pérola cruzavam os ares como boleadeiras, todos os insultos e pragas tinham saído de dentro do inferno daquelas almas penadas.
Já entrei dando cacete. Depois de uma rasteira num desabusado que avançava para mim, empurrei uns dois, acertei um direto em cima do olho de um outro, e chutei a cara daquele paciente do professor Propp que gritava sempre:
Eu digo a palavra! Eu digo a palavra!
Eu tinha uma missão pela frente e a cumpriria nem que fosse com sangue pelos joelhos: tinha que chegar até um copo de gim-tônica.
Num clic, tudo parou. A pancadaria cessou, as pessoas começaram a se limpar, a pedir desculpas uns aos outros, as senhoras voltaram.
E por toda a sala se ouviam:
O senhor esteve ótimo.
Grande porrada a sua.
Espero contar com seu soco na cara na próxima.
Disponha. O senhor também bate muito bem.
Por todo o campo de ruínas, os criados juntavam coisas, amontoavam pratos quebrados, reacomodavam as flores amarfanhadas nos vasos, uns já varriam.
Procurei a causa daquele cessar-fogo instantâneo.
No alto da escada, ela.
Norma começou a descer, degrau após degrau, saboreando cada degrau como quem deglute uma fina iguaria. Tinha posto um vestido de gala, desses de cantoras e atrizes de antigamente. E sorria, democrática, para todos os lados. A sala logo está recomposta, pronta para ouvir. Um que outro criado ainda dava jeito num cantinho mais convulsionado. A distinta plateia ficou distinta de novo, sentando quietinha, nos sofás, nas poltronas, nas almofadas, todos os olhares em Norma, todos se esforçando por produzir o silêncio que ela merecia, um silêncio de vinte e quatro quilates. Norma avançou até o meio da sala. E então foi aquele negócio. Começou com “Until The Real Thing Comes Along”, da Ella Fitzgerald, e foi embora cantando, cantando tudo. Então, ouvi na plena luz dos lustres e candelabros aquela voz que eu tinha ouvido (ou tinha pensado ouvir?) na noite passada, quando voltei para a festa, durante a tempestade, na casa vazia, só eu e o criado, e eu tive aquele sonho, se é que sonho foi (e eu posso provar que não foi). De repente, alguma coisa começou a mudar. A voz de Norma começou a acelerar como uma gravação que ganha mais e mais rotações por segundo. Eu sabia! Eu sabia!

4

TUDO ESTAVA MUDANDO. Algo de maligno naquela casa impedia que as coisas permanecessem como estavam. E senti de novo aquele cheiro de queimado, enquanto socorriam Norma que, durante um agudo mais lancinante, teve um desfalecimento, e foi caindo, caindo lentamente nos braços de vários circunstantes, que acudiram solícitos.
Desmaiada, os cabelos soltos caindo para o chão, Norma foi levada nos braços pelo dono da festa até uma porta atrás do salão, e desapareceram, seguidos por vários homens e mulheres, que cochichavam como durante uma missa.
Olhei para a cara dos presentes. Todos tinham mudado. Os rostos tinham adquirido uma expressão perversa, até a luz parecia ter mudado, e o silêncio, depois da voz de Norma, era quase insuportável.
Então, o mordomo começou a anunciar a cada grupo, em cada canto, com toda a polidez:
Está na hora, senhor. Minhas senhoras, está na hora.
Solenemente, todos foram se levantando, ajeitando as roupas e caminhando, sem pressa, para a porta por onde tinham passado Norma, nos braços do dono da casa e os outros.
Me levantei também, e ia começar a acompanhar o séquito quando alguma coisa em mim me disse, eu podia escapar daquilo tudo, e eu tinha ficado de dar um telefonema antes de sair da cidade para um amigo qualquer, desmarcando um compromisso.
Pedi um telefone ao mordomo e disquei o número. E a voz que atendeu ao meu alô só respondeu:
Os warhoos venceram os seres gasosos dos pântanos de Achernar, e quem estiborna agora são os comários de Quadrak. Depois, silêncio. Olhei, e os últimos convivas sumiam pela porta por onde tinha saído Norma, nos braços do dono da casa. Olhei em volta, para o salão vazio, lustres e candelabros luzindo para ninguém.
Me apressei e fui atrás. Eu não perderia aquilo por nada deste mundo. Fosse lá o que fosse.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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