1
Aos
18 anos, pensei ter atingido a sabedoria. Era baixinha, tinha sardas
e tirei-lhe o cabaço na primeira oportunidade. Não ficou por isso.
A lei falou mais forte. E tive que me casar, prematuro como uma
ejaculação precoce. Nem tudo foram rosas, no princípio. Nos pulsos
ainda me ardem as cicatrizes de três malssucedidas tentativas de
suicídio. Mas eu não posso ver sangue. Sobretudo, quando meu. Assim
decidi continuar vivo. Principalmente porque o mundo estava cheio
delas. De Marlenes. De Ivones. De Déboras. De Luísas. De Sônias.
De Olgas. De Sandras. De Edites. De Kátias. De Rosas. De Evas. De
Anas. De Mônicas. De Helenas. De Rutes. De Raquéis. De Albertos. De
Carlos. De Júniors, De... (ihh, acho que acabo de cometer um ato
falho). De Joanas. De Veras. De Normas.
2
De
Norma, me lembro bem. Como esquecer com quantas bocas se faz uma
daquelas, aquela multidão de abismos em que ela consistia? Aquilo
sim é que era uma buceta convicta. Cair ali era como, bem...
3
Com
aquela cara de homem fingindo estar interessado no papo de uma mulher
apenas porque está com vontade de comê-la, com aquela cara de
mulher costurando e bordando pensamentos apenas porque está a fim de
ser comida por ele, cheguei, caprichei, relaxei, lembrei tudo que
tinha aprendido em Kant e Hegel, repassei toda a teoria dos quanta, a
morfologia dos contos de magia de Propp, o voo do 14-bis, cheguei e
não perdoei:
— Tem
fogo?
4
O
tem fogo saiu meio esquisito. Nem parecia que eu tinha
estudado três anos de mecânica celeste, dois de escultura em metal
e tinha sido, podem perguntar, um jogador pra lá de razoável na
minha equipe.
Não,
balido baldio, urro estrangulado, você parecia um tem fogo
imbecil qualquer, um tem fogo dito por um corretor de qualquer
uma dessas coisas que precisam de correção, a vida emocional dos
cangurus, as problemáticas trajetórias de Urano, os particípios
passados dos verbos da segunda conjugação.
Apesar
de você, jamais vou esquecer, deus nenhum me deixe, o fatal é que
cheguei e disse aquilo, aquele palavrão que significava a
irremediável intromissão da minha vida na vida daquela figura,
gesto cujas consequências os presentes vão poder, a seguir,
apreciar em suas devidas dimensões.
5
Uma
dessas confusões sorridentes onde as pessoas riem porque sabem que
vão morrer no fim, e todo mundo disfarça a evidência de que tudo
já está mortinho da silva, o vaso no centro da sala, a árvore
estampada na cortina, e até os Stones na radiola já exalam aquele
fedor típico de múmia de faraó da vigésima dinastia, uma festa
dessas em que alguém te chega, cigarro ereto, e fulmina: — Tem
fogo? Seriam Stones ou Ella, como lembrar, tantas bucetas depois,
como evitar este ponto de interrogação?
6
— Tem
fogo? Isso lá é jeito de chegar numa dona, conversar com uma
senhora, hein, seu isso e aquilo, que pensou ter atingido a
sabedoria? Mulher tem que ser abordada com vinte e cinco canhões de
bolhas de sabão, princesa e flor do oriente, rosa de incenso,
filé-mignon da parte esquerda do meu cérebro, abre os braços, isto
é, os pássaros, isto é, faça-se a luz, paradise me now...
7
— A
juventude pode acabar com uma pessoa.
— Eu
já vi essa religião. Deus morre durante a viagem.
— Jotaerre?,
dos Jotaerres de Birmingham!, mal posso acreditar que estou aqui, eu
devo estar sonhando.
— Vendo
o apetite com que uma mulher chupa teu pau, nunca te ocorreu que pode
não ser uma má ideia?
— A
lei, meu caro, só proíbe certos crimes porque são ótimos
negócios.
— Inteligência
em homem é que nem pau duro, mulher alguma resiste.
— O
crédito? É o câncer do mundo.
— Qual
é a ilusão que você me recomenda?
— A
inflação mundial, dinheiro produzindo dinheiro, sem passar pela
produção, abstrações produzindo abstrações, sistemas puros,
quero dizer, sem relação alguma com a realidade, porra, você me
entende!
— Milhões,
milhões, milhões, um começou a gritar, uma ideia é a coisa
mais cara que existe.
E
virando para todo mundo, todo mundo tinha cara, a começar por mim,
de pânico, com aquelas luzes quem conseguia não ficar muito pálido,
o pavor abaixo da pele, a bomba, a última guerra, o fim de.
A
ideia mais cara que existe.
8
Entrei
no salão principal, um fósforo aceso no interior da luz absoluta,
adeus, matéria! A luz que sopra em cada partícula um vento em cada
molécula que um vento sopra em cada instante em cada momento
transformando tudo em luz, um halo só, a luz suprema de uma festa,
qualquer festa, bem-vindo, brilho, os sentidos que vão morrer te
saúdam!
A
última coisa que vi, claro que foi, quem mais? Falava numa roda de
amigas, aquele ligeiro tédio de quem diz, não, querida, isso é
impossível, a marquesa saiu às cinco horas.
E
lá vou eu, atraído pela lei da gravidade, até o óbvio, a matéria,
a verdade, quem sabe. Ela irresistível como uma página de papel em
branco. Quem sabe a sabedoria, quem sabe, alguma outra coisa.
— Norma!
Chegou alguém gritando como se.
9
Então,
eu soube. Ela se chamava Norma.
De
normas, vocês sabem, o inferno está cheio.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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