sexta-feira, 5 de abril de 2019

A morte do avô

A mãe deixou a tenda e foi falar com o pregador:
Sr. Casy — disse —, o senhor já tratou de doentes, e o avô está bem mal. O senhor não quer ver o que ele tem?
Casy foi rapidamente até a tenda e entrou. Um colchão de casal estava estendido no chão, sob lençóis bem esticados; ao lado havia um pequeno fogareiro de estanho com pés de ferro em que o fogo ardia fracamente. Havia ainda na tenda um balde cheio de água, um caixote com alimentos e outro caixote que servia de mesa, e era tudo. Os raios do sol poente coavam-se avermelhados através das paredes de lona da tenda. Sairy Wilson estava ajoelhada junto ao colchão, onde o avô estava deitado de costas. Tinha as faces rubras, os olhos abertos e mirava o teto. Respirava com dificuldade.
Casy pegou o velho pulso esquelético entre os dedos.
Cansado, avô? — perguntou.
Os olhos fixos voltaram-se em direção à voz, mas nada pareciam ver. E os lábios finos formulavam palavras, mas nada diziam. Casy escutou a pulsação e passou depois a palma da mão na testa do avô. O corpo do ancião começou a debater-se, suas pernas moviam-se convulsivas e as mãos agitavam-se. Emitiu sons confusos, inarticulados, o rosto mantinha-se rubro sob as costeletas brancas e ásperas.
Sairy Wilson dirigiu-se suavemente a Casy:
O senhor sabe de que se trata?
Ele olhou para as faces enrugadas e os olhos ardentes:
A senhora sabe?
Acho que sim.
Que é? — perguntou Casy.
Acho que não devo dizer, eu posso estar enganada.
Casy tornou a olhar as faces rubras e retesadas do velho.
A senhora acha... que seja um ataque.
Sim — disse Sairy. — Já vi isso antes, três vezes.
De fora vinha o barulho dos que armavam o acampamento: cortava-se lenha e panelas chocavam-se ruidosas. A mãe enfiou a cabeça pela entrada da tenda.
A avó quer vir pra cá — disse. — Ela pode?
Acho que sim. Proibindo seria pior — respondeu o pregador.
Ele está melhor? — perguntou a mãe.
Casy sacudiu a cabeça vagarosamente. A mãe baixou rapidamente os olhos e fitou o velho rosto crispado. Voltou a cabeça para fora da tenda e ouvia-se-lhe a voz dizendo:
Não é nada grave, avó. Ele só precisa descansar um pouco.
E a avó respondeu, zangada:
Mas eu quero ver ele. Esse velho é sabido como o diabo. A gente nunca sabe direito o que ele tem. — Entrou intempestivamente na tenda, pôs-se diante do colchão e mirou o marido: — Que é que ocê tem? — perguntou.
E novamente os olhos do avô se dirigiram à origem da voz e seus lábios contraíram-se.
Tá fingindo — disse a avó. — Eu não diss’que ele é sabido? Hoje de manhã fez a mesma coisa pra não precisar embarcar com a gente. De repente, começaram a doer-lhe as cadeiras — falou, quase com desprezo. — Ele tá é fingindo. Já conheço a manha; é pra não precisar falar com ninguém.
Casy disse brandamente:
Ele não está fingindo, avó. Está doente mesmo.
Oh! — Ela olhou novamente para o marido.
Mas... tá muito doente?
Sim, bastante doente, avó.
Por um instante, ela hesitou.
Bom — disse depois com rapidez —, então por que é que o senhor não tá rezando? Não é um pregador?
Os dedos fortes de Casy fecharam-se novamente em torno do pulso do avô.
Eu já disse à senhora que não sou mais nenhum pregador.
Mas reza, reza de qualquer maneira — ordenou ela. — O senhor sabe todas as rezas de cor.
Não sei, não — disse Casy. — Não sei o quê, e nem para quem rezar.
O olhar da avó desgrudou de Casy e estacou em Sairy.
Ele não quer rezar — falou. — Já contei à senhora como a Ruthie rezava quando era bem pequenina? Ela dizia: “Vou deitar nessa cama, pra meu corpo descansar. E quando ele chegou, o armário estava vazio e o coitado do cachorro não encontrou mais nada. Amém.” Era assim que ela rezava.
A sombra de alguém que passava entre o sol poente e a tenda projetou-se na lona.
O avô parecia estar numa luta tremenda; todos os seus músculos se contraíram. E de repente estremeceu, como se tivesse sido atingido por forte pancada. Jazia imóvel agora, e a respiração se lhe interrompera. Casy debruçou-se sobre a face do ancião e viu que escurecia. Sairy tocou o ombro de Casy. Ela sussurrou:
A língua dele, a língua, olhe a língua dele.
Casy anuiu.
Fique na frente da avó, para que ela não veja nada — disse. A seguir, entreabriu as mandíbulas fortemente comprimidas do ancião e meteu a mão na boca, à procura da língua. E quando a ia puxando para fora, um ronco emergiu do peito paralisado, acompanhado de uma inspiração, como um soluço. Casy achou um pauzinho no chão e com ele comprimiu para baixo a língua do velho, e a respiração recomeçou, desordenada e ruidosa.
A avó saltitava qual uma galinha.
Reza — disse ela. — Reza, já disse! Reza! — Sairy tentou contê-la. — Reza logo, seu danado duma figa! — gritou a avó.
Casy lançou-lhe um olhar prolongado. A respiração difícil tornava-se mais aguda e desigual.
Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome...
Aleluia! — clamou a avó.
... Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu.
Amém.
Um suspiro estridente deixou a boca entreaberta, seguido de um ronco sibilante.
O pão nosso de cada dia... nos dai hoje... e perdoai…
A respiração cessou subitamente. Casy examinou os olhos do avô e esses eram claros, profundos e penetrantes, e havia neles um reflexo de serenidade e inteligência.
Aleluia! — disse a avó. — Continue.
Amém! — concluiu Casy.
Então a avó sossegou. E fora da tenda, todas as vozes emudeceram. Um carro deslizou na estrada. Casy continuou ajoelhado diante do colchão. Os outros, lá fora, estavam quietos, à escuta, atentos aos sons da morte. Sairy pegou a avó pelo braço e conduziu-a para fora da tenda, e a avó caminhava com dignidade e com a cabeça bem erguida. Foi ao encontro da família e diante dela manteve a cabeça erguida. Sairy levou-a até um colchão estendido sobre a relva e sentou-a. A avó quedou-se a olhar fixamente diante de si, inundada de orgulho, pois que agora ela era alvo de atenção de todos. Na tenda tudo era silêncio, e Casy por fim abriu caminho por entre as abas da tenda e a deixou também.
O pai perguntou com brandura:
Como foi?
Apoplexia. Um ataque fulminante.
A vida recomeçou. O sol, desaparecendo no horizonte, perdia o relevo. E sobre a estrada passava uma longa fila de caminhões, cujas laterais estavam pintadas de vermelho. Vinham com estrondo, produzindo um pequeno terremoto e soltando pelos tubos de escapamento a fumaça azul do óleo diesel. Um homem estava ao volante de cada caminhão, e os respectivos ajudantes estavam deitados em beliches, empoleirados na cabine. Os caminhões não paravam; passavam monótonos, dia e noite, incessantemente, estremecendo o chão com seu caminhar pesado.
A família reuniu-se como que por instinto. O pai acocorou-se no chão e tio John acocorou-se ao lado dele. O pai era agora o chefe da família. A mãe ficou de pé, atrás dele. Noah, Tom e Al acocoraram-se e o pregador sentou-se, depois se reclinou sobre os cotovelos. Connie e Rosa de Sharon passeavam um pouco adiante. Chegavam agora Ruthie e Winfield falando alto, trazendo o balde de água seguro pelas mãos; notaram ter havido alguma coisa. Baixaram a voz, depositaram o balde no chão e foram vagarosamente postar-se ao lado da mãe.
A avó estava sentada, com um ar solene e orgulhoso, enquanto o grupo se formava e ninguém mais a olhava. Aí ela deitou-se e cobriu o rosto com os braços. O sol descera completamente, mergulhando os campos em um crepúsculo brilhante, de maneira que os rostos reluziam à luz do poente e os olhos refletiam a cor do firmamento. O entardecer juntava toda a luz que conseguia encontrar.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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