A
mãe deixou a tenda e foi falar com o pregador:
— Sr.
Casy — disse —, o senhor já tratou de doentes, e o avô está
bem mal. O senhor não quer ver o que ele tem?
Casy
foi rapidamente até a tenda e entrou. Um colchão de casal estava
estendido no chão, sob lençóis bem esticados; ao lado havia um
pequeno fogareiro de estanho com pés de ferro em que o fogo ardia
fracamente. Havia ainda na tenda um balde cheio de água, um caixote
com alimentos e outro caixote que servia de mesa, e era tudo. Os
raios do sol poente coavam-se avermelhados através das paredes de
lona da tenda. Sairy Wilson estava ajoelhada junto ao colchão, onde
o avô estava deitado de costas. Tinha as faces rubras, os olhos
abertos e mirava o teto. Respirava com dificuldade.
Casy
pegou o velho pulso esquelético entre os dedos.
— Cansado,
avô? — perguntou.
Os
olhos fixos voltaram-se em direção à voz, mas nada pareciam ver. E
os lábios finos formulavam palavras, mas nada diziam. Casy escutou a
pulsação e passou depois a palma da mão na testa do avô. O corpo
do ancião começou a debater-se, suas pernas moviam-se convulsivas e
as mãos agitavam-se. Emitiu sons confusos, inarticulados, o rosto
mantinha-se rubro sob as costeletas brancas e ásperas.
Sairy
Wilson dirigiu-se suavemente a Casy:
— O
senhor sabe de que se trata?
Ele
olhou para as faces enrugadas e os olhos ardentes:
— A
senhora sabe?
— Acho
que sim.
— Que
é? — perguntou Casy.
— Acho
que não devo dizer, eu posso estar enganada.
Casy
tornou a olhar as faces rubras e retesadas do velho.
— A
senhora acha... que seja um ataque.
— Sim
— disse Sairy. — Já vi isso antes, três vezes.
De
fora vinha o barulho dos que armavam o acampamento: cortava-se lenha
e panelas chocavam-se ruidosas. A mãe enfiou a cabeça pela entrada
da tenda.
— A
avó quer vir pra cá — disse. — Ela pode?
— Acho
que sim. Proibindo seria pior — respondeu o pregador.
— Ele
está melhor? — perguntou a mãe.
Casy
sacudiu a cabeça vagarosamente. A mãe baixou rapidamente os olhos e
fitou o velho rosto crispado. Voltou a cabeça para fora da tenda e
ouvia-se-lhe a voz dizendo:
— Não
é nada grave, avó. Ele só precisa descansar um pouco.
E
a avó respondeu, zangada:
— Mas
eu quero ver ele. Esse velho é sabido como o diabo. A gente nunca
sabe direito o que ele tem. — Entrou intempestivamente na tenda,
pôs-se diante do colchão e mirou o marido: — Que é que ocê tem?
— perguntou.
E
novamente os olhos do avô se dirigiram à origem da voz e seus
lábios contraíram-se.
— Tá
fingindo — disse a avó. — Eu não diss’que ele é sabido? Hoje
de manhã fez a mesma coisa pra não precisar embarcar com a gente.
De repente, começaram a doer-lhe as cadeiras — falou, quase com
desprezo. — Ele tá é fingindo. Já conheço a manha; é pra não
precisar falar com ninguém.
Casy
disse brandamente:
— Ele
não está fingindo, avó. Está doente mesmo.
— Oh!
— Ela olhou novamente para o marido.
— Mas...
tá muito doente?
— Sim,
bastante doente, avó.
Por
um instante, ela hesitou.
— Bom
— disse depois com rapidez —, então por que é que o senhor não
tá rezando? Não é um pregador?
Os
dedos fortes de Casy fecharam-se novamente em torno do pulso do avô.
— Eu
já disse à senhora que não sou mais nenhum pregador.
— Mas
reza, reza de qualquer maneira — ordenou ela. — O senhor sabe
todas as rezas de cor.
— Não
sei, não — disse Casy. — Não sei o quê, e nem para quem rezar.
O
olhar da avó desgrudou de Casy e estacou em Sairy.
— Ele
não quer rezar — falou. — Já contei à senhora como a Ruthie
rezava quando era bem pequenina? Ela dizia: “Vou deitar nessa cama,
pra meu corpo descansar. E quando ele chegou, o armário estava vazio
e o coitado do cachorro não encontrou mais nada. Amém.” Era assim
que ela rezava.
A
sombra de alguém que passava entre o sol poente e a tenda
projetou-se na lona.
O
avô parecia estar numa luta tremenda; todos os seus músculos se
contraíram. E de repente estremeceu, como se tivesse sido atingido
por forte pancada. Jazia imóvel agora, e a respiração se lhe
interrompera. Casy debruçou-se sobre a face do ancião e viu que
escurecia. Sairy tocou o ombro de Casy. Ela sussurrou:
— A
língua dele, a língua, olhe a língua dele.
Casy
anuiu.
— Fique
na frente da avó, para que ela não veja nada — disse. A seguir,
entreabriu as mandíbulas fortemente comprimidas do ancião e meteu a
mão na boca, à procura da língua. E quando a ia puxando para fora,
um ronco emergiu do peito paralisado, acompanhado de uma inspiração,
como um soluço. Casy achou um pauzinho no chão e com ele comprimiu
para baixo a língua do velho, e a respiração recomeçou,
desordenada e ruidosa.
A
avó saltitava qual uma galinha.
— Reza
— disse ela. — Reza, já disse! Reza! — Sairy tentou contê-la.
— Reza logo, seu danado duma figa! — gritou a avó.
Casy
lançou-lhe um olhar prolongado. A respiração difícil tornava-se
mais aguda e desigual.
— Pai
Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome...
— Aleluia!
— clamou a avó.
— ...
Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na
terra como no céu.
— Amém.
Um
suspiro estridente deixou a boca entreaberta, seguido de um ronco
sibilante.
— O
pão nosso de cada dia... nos dai hoje... e perdoai…
A
respiração cessou subitamente. Casy examinou os olhos do avô e
esses eram claros, profundos e penetrantes, e havia neles um reflexo
de serenidade e inteligência.
— Aleluia!
— disse a avó. — Continue.
— Amém!
— concluiu Casy.
Então
a avó sossegou. E fora da tenda, todas as vozes emudeceram. Um carro
deslizou na estrada. Casy continuou ajoelhado diante do colchão. Os
outros, lá fora, estavam quietos, à escuta, atentos aos sons da
morte. Sairy pegou a avó pelo braço e conduziu-a para fora da
tenda, e a avó caminhava com dignidade e com a cabeça bem erguida.
Foi ao encontro da família e diante dela manteve a cabeça erguida.
Sairy levou-a até um colchão estendido sobre a relva e sentou-a. A
avó quedou-se a olhar fixamente diante de si, inundada de orgulho,
pois que agora ela era alvo de atenção de todos. Na tenda tudo era
silêncio, e Casy por fim abriu caminho por entre as abas da tenda e
a deixou também.
O
pai perguntou com brandura:
— Como
foi?
— Apoplexia.
Um ataque fulminante.
A
vida recomeçou. O sol, desaparecendo no horizonte, perdia o relevo.
E sobre a estrada passava uma longa fila de caminhões, cujas
laterais estavam pintadas de vermelho. Vinham com estrondo,
produzindo um pequeno terremoto e soltando pelos tubos de escapamento
a fumaça azul do óleo diesel. Um homem estava ao volante de cada
caminhão, e os respectivos ajudantes estavam deitados em beliches,
empoleirados na cabine. Os caminhões não paravam; passavam
monótonos, dia e noite, incessantemente, estremecendo o chão com
seu caminhar pesado.
A
família reuniu-se como que por instinto. O pai acocorou-se no chão
e tio John acocorou-se ao lado dele. O pai era agora o chefe da
família. A mãe ficou de pé, atrás dele. Noah, Tom e Al
acocoraram-se e o pregador sentou-se, depois se reclinou sobre os
cotovelos. Connie e Rosa de Sharon passeavam um pouco adiante.
Chegavam agora Ruthie e Winfield falando alto, trazendo o balde de
água seguro pelas mãos; notaram ter havido alguma coisa. Baixaram a
voz, depositaram o balde no chão e foram vagarosamente postar-se ao
lado da mãe.
A
avó estava sentada, com um ar solene e orgulhoso, enquanto o grupo
se formava e ninguém mais a olhava. Aí ela deitou-se e cobriu o
rosto com os braços. O sol descera completamente, mergulhando os
campos em um crepúsculo brilhante, de maneira que os rostos reluziam
à luz do poente e os olhos refletiam a cor do firmamento. O
entardecer juntava toda a luz que conseguia encontrar.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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