quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Armas invisíveis

Depois da fome, o segundo maior inimigo da humanidade era representado pela peste e pelas doenças infecciosas. Cidades fervilhando de gente, conectadas por um fluxo incessante de comerciantes, funcionários e peregrinos, eram ao mesmo tempo o fundamento da civilização humana e o terreno ideal para a proliferação de agentes patogênicos. Em consequência, as pessoas na antiga Atenas ou na Florença medieval viviam suas vidas conscientes de que poderiam adoecer e morrer em dias, ou que subitamente poderia irromper uma epidemia e destruir toda a sua família numa única investida.
A mais famosa dessas irrupções, a chamada Peste Negra, ou peste bubônica, teve início na década de 1330, em algum lugar da Ásia Central ou Oriental, quando a bactéria Yersinia pestis, que tinha a pulga como hospedeiro, começou a infectar os humanos que eram picados por esse inseto. De lá, montada num exército de ratos e pulgas, a peste espalhou-se rapidamente pela Ásia, Europa e pelo norte da África, levando menos de vinte anos para chegar às margens do oceano Atlântico. Entre 75 milhões e 200 milhões de pessoas morreram — mais de um quarto da população da Eurásia. Na Inglaterra, quatro em cada dez pessoas pereceram, e a população caiu de 3,7 milhões antes da peste para 2,2 milhões depois dela. A cidade de Florença perdeu 50 mil de seus 100 mil habitantes.
As autoridades eram completamente impotentes diante da calamidade. Além de organizar orações em massa e procissões, não tinham ideia de como interromper a propagação da epidemia — e muito menos de como curá-la. Até a era moderna, a culpa pela doença foi atribuída ao ar viciado, a demônios maliciosos ou a deuses raivosos; não se suspeitava da existência de bactérias e de vírus. As pessoas acreditavam facilmente em anjos e fadas, mas não conseguiam imaginar que uma pulga minúscula ou uma simples gota d’água contivesse um exército completo de predadores mortais.
A Peste Negra não foi um evento singular, nem mesmo a pior peste registrada na História. Epidemias mais calamitosas assolaram a América, a Austrália e as ilhas do Pacífico na sequência da chegada dos primeiros europeus. Exploradores e colonizadores, sem saberem, trouxeram consigo doenças infecciosas contra as quais os nativos não tinham imunidade. Como resultado, até 90% das populações locais morreram.
Em 5 de março de 1520, uma pequena frota espanhola deixou a ilha de Cuba a caminho do México. Os navios levavam novecentos soldados espanhóis, além de cavalos, armas de fogo e alguns escravos africanos. Um dos escravos, Francisco de Eguía, transportava uma carga muito mais mortal. Francisco não sabia, mas, em algum lugar de suas trilhões de células, uma bomba-relógio biológica tiquetaqueava: o vírus da varíola. Depois que ele desembarcou no México, o vírus começou a se multiplicar exponencialmente em seu corpo e mais tarde irrompeu por toda a sua pele em erupções terríveis. O febril Francisco foi acomodado na casa de uma família nativa na cidade de Cempoallan. Ele infectou os membros da família, que por sua vez infectaram os vizinhos. Em dez dias Cempoallan virou um cemitério. Refugiados espalharam a doença de Cempoallan para cidades vizinhas e, à medida que, uma após a outra, elas sucumbiam à peste, novas ondas de refugiados aterrorizados carregavam a doença para todo o México e além dele.
Na península de Yucatán, os maias acreditavam que três deuses do mal — Ekpetz, Uzannkak e Sojakak — voavam à noite de aldeia em aldeia, infectando pessoas com a doença. Os astecas puseram a culpa nos deuses Tezcatlipoca e Xipe Totec, ou talvez na magia negra do povo branco. Sacerdotes e médicos foram consultados. Eles aconselharam as pessoas a orar e tomar banhos frios, além de esfregar o corpo com betume e lambuzar as feridas com besouros negros esmigalhados. Nada disso ajudou. Dezenas de milhares de cadáveres jaziam nas ruas apodrecendo, sem que ninguém ousasse se aproximar e queimá-los. Famílias inteiras pereceram em poucos dias, e as autoridades ordenaram que as casas fossem demolidas, soterrando os corpos. Em algumas povoações, metade da população morreu.
Em setembro de 1520 a peste tinha alcançado o vale do México e, em outubro, atravessou os portões da capital asteca, Tenochtitlán — uma magnífica metrópole com 250 mil habitantes. Em dois meses pelo menos um terço da população havia perecido, inclusive o imperador asteca Cuitláhuac. Em março de 1520, quando a esquadra espanhola chegou, o México abrigava 22 milhões de pessoas; em dezembro do mesmo ano apenas 14 milhões ainda estavam vivas. A varíola foi apenas o primeiro golpe. Enquanto os novos senhores espanhóis estavam ocupados enriquecendo e explorando os nativos, ondas letais de gripe, sarampo e outras doenças infecciosas, uma após a outra, varreram o país, até que em 1580 sua população fora reduzida a menos de 2 milhões de pessoas.
Dois séculos mais tarde, em 18 de janeiro de 1778, o capitão James Cook, um explorador britânico, chegou ao Havaí. Essas ilhas eram densamente povoadas por cerca de meio milhão de pessoas, que viviam em total isolamento tanto da Europa como da América. Portanto, nunca tinham sido expostas às doenças europeias e americanas. O capitão Cook e seus homens introduziram os primeiros patógenos de gripe, tuberculose e sífilis no Havaí. Visitantes europeus subsequentes acrescentaram o tifo e a varíola. Em 1853, só restavam ali 70 mil sobreviventes.
Epidemias continuaram a matar dezenas de milhões de pessoas em pleno século XX . Em janeiro de 1918, soldados nas trincheiras do norte da França começaram a morrer aos milhares de um tipo especialmente virulento de gripe, denominado “gripe espanhola”. A linha de frente da guerra era o ponto final da mais eficiente rede de suprimento global que o mundo tinha visto até então. Homens e munições jorravam da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da Índia e da Austrália. O petróleo era enviado do Oriente Médio, grãos e carne chegavam da Argentina, a borracha vinha da Malásia, e o cobre, do Congo. Em troca, todos receberam a gripe espanhola. Em poucos meses, cerca de meio bilhão de pessoas — um terço da população global — foi infectado com o vírus. Na Índia ele dizimou 5% da população (15 milhões de pessoas). Na ilha do Taiti, 14% dos habitantes morreram. Em Samoa, 20%. Nas minas de cobre do Congo, um em cada cinco trabalhadores pereceu. No total, a pandemia matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas em menos de um ano. A Primeira Guerra Mundial matou 40 milhões de 1914 a 1918.
Além desses tsunamis epidêmicos que atingiram o gênero humano a cada poucas décadas, houve ondas menores, porém mais regulares, de doenças infecciosas que todo ano matavam milhões. Crianças com baixa imunidade eram particularmente suscetíveis, daí a frequente designação de “doenças infantis”. Até o início do século XX, cerca de um terço das crianças morria de uma combinação de desnutrição e doença.
Durante o último século, a humanidade ficou ainda mais vulnerável a epidemias, graças à combinação de dois fatores: aumento da população e meios de transporte mais eficientes. Uma metrópole moderna, como Tóquio ou Kinshasa, oferece aos patógenos um terreno de caça mais rico do que a Florença medieval ou a Tenochtitlán de 1520, e a rede global de transporte é hoje mais eficiente do que em 1918. Um vírus espanhol pode chegar ao Congo ou ao Taiti em menos de 24 horas. Seria de esperar, portanto, que vivêssemos num inferno epidemiológico, com sucessivas pragas letais.
No entanto, tanto a incidência como o impacto das epidemias decresceram dramaticamente nas últimas décadas. Particularmente, a mortalidade infantil global é a mais baixa de todos os tempos: menos de 5% das crianças morrem antes de chegar à idade adulta. No mundo desenvolvido, a taxa é de menos de 1%. Esse milagre se deve às conquistas sem precedentes da medicina no século XX, que nos proveu de vacinas e antibióticos, com higiene e infraestrutura médica muito melhores.
Por exemplo, uma campanha global de vacinação antivariólica foi tão bem-sucedida que, em 1979, a Organização Mundial da Saúde ( OMS ) declarou que a humanidade tinha vencido, e que a varíola fora erradicada. Foi a primeira epidemia que os humanos conseguiram varrer da face da Terra. Em 1967, a varíola havia infectado 15 milhões de pessoas e matado 2 milhões, mas em 2014 não houve uma única pessoa infectada ou morta por essa doença. A vitória foi tão completa que a OMS já parou de promover a vacinação contra a varíola.
De tempos em tempos ficamos alarmados com a irrupção de uma nova praga potencial, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (na sigla em inglês, Sars) em 2002-3, a gripe aviária em 2005, a gripe suína em 2009-10, e o Ebola em 2014. Mas, graças a contramedidas eficientes, esses incidentes resultaram, até agora, num número comparativamente menor de vítimas. A Sars, por exemplo, suscitou de início temores de uma nova Peste Negra, mas provocou a morte de menos de mil pessoas no mundo inteiro. A irrupção do Ebola na África Ocidental pareceu a princípio uma espiral fora de controle. Em 26 de setembro de 2014 a OMS a descreveu como “a mais grave emergência na saúde pública vista em tempos modernos”. 14 Contudo, no início de 2015 a epidemia tinha sido refreada e, em janeiro de 2016, a OMS a declarou erradicada. O Ebola infectou 30 mil pessoas (e matou 11 mil), causou enormes perdas econômicas em toda a África Ocidental e enviou ondas de choque de ansiedade para o mundo, mas não se espalhou além daquela região da África, e sua taxa letal não chegou nem de longe à escala da gripe espanhola ou da epidemia de varíola mexicana.
Até a tragédia da aids, aparentemente o maior fracasso da medicina nas últimas décadas, pode ser vista como um sinal de progresso. Desde sua primeira irrupção, no início da década de 1980, mais de 30 milhões de pessoas morreram de aids, e mais dezenas de milhões sofreram debilitação física e danos psicológicos. Essa epidemia foi difícil de entender e de tratar por ser uma doença singularmente tortuosa. Enquanto uma pessoa infectada com o vírus da varíola morre em alguns dias, um paciente HIV positivo pode parecer perfeitamente saudável durante semanas e meses e continuar infectando outros sem saber. Além disso, o próprio vírus HIV não mata. Em vez disso, destrói o sistema imunológico e, em decorrência, expõe o paciente a inúmeras outras doenças. São as doenças secundárias que efetivamente matam as vítimas da aids. Em consequência, quando essa síndrome começou a se espalhar, foi especialmente difícil compreender o que estava acontecendo. Em 1981, quando dois pacientes foram admitidos num hospital em Nova York, um ostensivamente morrendo de pneumonia, e o outro, de câncer, nada evidenciava que ambos eram vítimas do vírus HIV, que pode tê-los infectado com meses, até mesmo anos, de antecedência.
No entanto, apesar dessas dificuldades, depois que a comunidade médica tomou ciência do novo e misterioso mal, só levou dois anos para que os cientistas o identificassem, compreendessem como o vírus se disseminava e sugerissem meios efetivos de desacelerar a epidemia. Mais dez anos, e novos medicamentos fizeram com que a aids se transformasse, passando de uma sentença de morte para uma condição crônica (ao menos para aqueles saudáveis o bastante para serem tratados). O que teria acontecido se a aids tivesse eclodido em 1581, e não em 1981? Muito provavelmente ninguém naquela época teria imaginado o que causava a epidemia, como se transmitia de uma pessoa a outra, ou como poderia ser detida (muito menos como curá-la). Em tais condições, essa síndrome poderia ter matado proporções muito maiores da raça humana, igualando e talvez até superando a Peste Negra.
Apesar do horrendo dano causado pela aids, e a despeito dos milhões que morrem a cada ano de doenças infecciosas há muito estabelecidas, como a malária, as epidemias representam uma ameaça muito menor à saúde do homem do que representaram no milênio anterior. A imensa maioria das pessoas morre de enfermidades não infecciosas, como o câncer e doenças cardiovasculares, ou simplesmente de velhice. (A propósito, o câncer e as doenças cardiovasculares não são, é claro, doenças novas — elas remontam à Antiguidade. No passado, contudo, era relativamente reduzido o número de pessoas que viviam tempo bastante para morrer por causa delas.)
Muitos temem que essa vitória seja apenas temporária e que algum primo desconhecido da Peste Negra esteja nos aguardando na próxima esquina. Ninguém pode assegurar que pragas não tornarão a acontecer, mas há boas razões para acreditar que, na corrida armamentista entre médicos e germes, os médicos estão na frente. Novas doenças infecciosas estão aparecendo principalmente como resultado de mutações eventuais nos genomas dos patógenos. Essas mutações permitem que os patógenos pulem dos animais para os humanos, superem o sistema imunológico humano, ou resistam a medicamentos como os antibióticos. É provável que no presente as mutações ocorram e se propaguem mais rapidamente do que no passado em face do impacto do homem sobre o meio ambiente. Mas na corrida contra a medicina, os patógenos, em última análise, dependem da mão cega da sorte.
Do outro lado, os médicos contam mais do que meramente com a sorte. Ainda que a ciência tenha uma dívida enorme com acasos felizes, não se trata simplesmente de jogar diferentes substâncias químicas num tubo de ensaio na esperança de que daí saia um novo medicamento. Ano após ano os médicos acumulam mais e melhores conhecimentos, que utilizam para conceber e projetar medicamentos e tratamentos eficazes. Em consequência, embora não se tenha dúvida de que em 2050 vamos ter de enfrentar germes muitos mais resistentes, a medicina naquele ano estará capacitada a lidar com eles com mais eficiência do que hoje.
Em 2015 os médicos anunciaram a descoberta de um tipo novo de antibiótico — a teixobactina —, ao qual as bactérias ainda não têm resistência. Alguns estudiosos acreditam que a teixobactina pode ser um aliado na luta contra germes super-resistentes. Os cientistas também estão desenvolvendo novos e revolucionários tratamentos, que funcionam de modo radicalmente diferente de quaisquer outros que os precederam. Por exemplo, alguns laboratórios de pesquisa já trabalham com nanorrobôs, que um dia poderão navegar em sua corrente sanguínea, identificar doenças e eliminar patógenos e células cancerosas. Microrganismos podem ter 4 bilhões de anos de experiência acumulada lutando contra inimigos orgânicos, mas sua experiência é nula no combate a predadores biônicos — portanto, será duplamente difícil desenvolver defesas eficazes contra eles.
Assim, mesmo sem a certeza de que algum surto de um novo Ebola ou uma linhagem desconhecida de gripe não possa assolar o mundo e matar milhões, não vamos considerar que se trata de uma calamidade natural inevitável. Ao contrário, vejamos nisso uma indesculpável falha humana e peçamos as cabeças dos responsáveis. No fim do verão de 2014, durante algumas semanas terríveis, pareceu que o Ebola estava levando a melhor sobre as autoridades encarregadas da saúde global. Foi quando se criaram apressadamente comitês de investigação. Um relatório inicial publicado em 18 de outubro de 2014 criticava a OMS por ter reagido de maneira insatisfatória à eclosão do vírus; a culpa pela epidemia recaiu sobre a corrupção e a ineficiência do ramo africano dessa agência de saúde. Mais críticas foram dirigidas à comunidade internacional como um todo por não ter reagido com rapidez e energia suficientes. Essas críticas partem da premissa de que a humanidade dispõe do conhecimento e dos instrumentos de prevenção; se mesmo assim uma epidemia sai do controle, isso se deve mais à incompetência humana do que à ira divina. Da mesma forma, o fato de que a aids continuou a infectar e matar milhões na África subsaariana anos após os médicos terem compreendido seus mecanismos é corretamente considerado um resultado de falhas humanas e não de um destino cruel.
Assim, na luta contra calamidades naturais como a aids e o Ebola, a balança pende em favor da humanidade. Mas, e quanto aos perigos inerentes à natureza humana? A biotecnologia nos capacita a derrotar bactérias e vírus, porém simultaneamente faz com que os próprios seres humanos se tornem uma ameaça sem precedentes. As mesmas ferramentas que capacitam médicos a identificar e curar rapidamente doenças novas podem também capacitar exércitos e terroristas a arquitetar doenças ainda mais terríveis e patógenos apocalípticos. Portanto, as grandes epidemias vão continuar a pôr a humanidade em perigo no futuro se, e somente se, a própria humanidade as criar, a serviço de alguma ideologia brutal. A era na qual a humanidade se via impotente diante de epidemias naturais provavelmente chegou ao fim. Mas ainda poderemos ter saudades dela.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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