quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Seu Joãozinho Bem-Bem e bando

E, uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo, muito bom se levantar.
Então, depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes, e fez uma descoberta: por que não pitava?! ... Não era pecado... Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se alegrar...
E isso foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com uma pressa medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina.
Não, não era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar melhor, mais sem pressa, a hora da libertação.
E, pois, foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e té hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.
Vindos do norte, da fronteira velha-de-guerra, bem montados, bem enroupados, bem apessoados, chegaram uns oito homens, que de longe se via que eram valentões: primeiro surgiu um, dianteiro, escoteiro, que percorreu, de ponta a ponta, o povoado, pedindo água à porta de uma casa, pedindo pousada em outra, espiando muito para tudo e fazendo pergunta e pergunta; depois, então, apareceram os outros, equipados com um despropósito de armas — carabinas, novinhas quase; garruchas, de um e de dois canos; revólveres de boas marcas; facas, punhais, quicés de cabos esculpidos; porretes e facões, — e transportando um excesso de breves nos pescoços.
O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio D ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-ti-eta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.
O povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de ficar na rua, com medo de falar e de ficar calado, com medo de existir. Mas Nhô Augusto, que vinha de vir do mato, carregando um feixe de lenha para um homem chamado Tobias da Venda, quando soube do que havia, jogou a carga no chão e correu ao encontro dos recém-chegados.
Então o bandido Flosino Capeta, um sujeito cabeça-de-canoa, que nunca se apartava do chefe, caçoou:
Que suplicante mais estúrdio será esse, que vem vindo ali, feito sombração?!
Mas seu Joãozinho Bem-Bem fez o cavalo avançar duas passadas, e disse:
Não debocha, companheiro, que eu estou gostando do jeito deste homem caminhar!
E Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa deste mundo seu Joãozinho Bem-Bem se agradar de alguém ao primeiro olhar. Mas Nhô Augusto, parecendo não ver os demais, veio direito ao chefe, encarando-o firme e perguntando:
O senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho Bem-Bem, pois não é?
P’ra lhe servir, meu senhor.
A pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por aqui... E de armar sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita satisfação!
Eu aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é mais, desse povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha gente...
Pois eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho...
Não será abuso, mano velho?
É não... E de coração.
Pois então, vamos, que Deus lhe pagará!
E seu Joãozinho Bem-Bem, que, com o rabo-do-olho, não deixava de vigiar tudo em volta, virou-se, rápido, para o Epifânio, que mexia com a winchester: — Guarda a arma, companheiro, que eu já disse que não quero essa moda de brincar de dar tiro à toa, à toa, só por amor de espantar os moradores do lugar!...Vamos chegando! Guia a gente, mano velho. E aí o casal de pretos, em grande susto, teve de se afanar, num corre-corre de depenar galinhas, matar leitoa, procurar ovos e fazer doces. E Nhô Augusto, depois de buscar ajuda para tratar dos cavalos, andou de casa em casa, arrecadando aluá, frutas, quitandas, fumo cheiroso, muita cachaça, e tudo o mais que de fino houvesse, para os convidados. E os seus convidados achavam imensa graça naquele homem, que se atarefava em servi-los, cheio de atenções, quase de carinhos, com cujo motivo eles não topavam atinar. Tinham armado as redes de fibra nas árvores do quintal, e repousavam, cada qual com o complicado arsenal bem ao alcance da mão. Então seu Joãozinho Bem-Bem contou a Nhô Augusto: estava de passagem, com uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o arraial das Taquaras, na nascença do Manduri, a chamado de seu amigo Nicolau Cardoso, atacado por um mandão fazendeiro, de injustiça. E Flosino Capeta acrescentou: — Diz’que o tal tomou reforço, com três tropas de serranos, mas é só a gente chegar lá, para não se ver ninguém mais... Eles têm que “dar o beiço e cair o cacho”, seu moço!... Mas a gente nem pode mais ter o gosto de brigar, porque o pessoal não aparece, no falar de entrar no meio do seu Joãozinho Bem-Bem…
Mas seu Joãozinho Bem-Bem interrompeu o outro: — Prosa minha não carece de contar, companheiro, que todo o mundo já sabe.
Nhô Augusto passeava com os olhos, que nunca ninguém tinha visto tão grandes nem tão redondos, mostrando todo o branco ao redor. Seu Joãozinho Bem-Bem ria um riso descansado, e os outros riam também, circundando-o, obedientes.
A gente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha este comercinho... Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha a maleita, e da outra está reinando bexiga da brava... E falaram também numa soldadesca, que vem lá da Diamantina... Por isso a gente deu tanta volta.
Os pretos trouxeram a janta, para o meio do pátio. Era um banquete. E quando a turma se pôs em roda, para começar a comer, o anfitrião fez o sinal da cruz e rezou alto; e os outros o acompanharam, com o que Nhô Augusto deu mostras de exultar.
O senhor, que é o dono da casa, venha comer aqui perto de mim, mano velho... — pediu seu Joãozinho Bem-Bem. — Mas, que é que o senhor está gostando tanto assim de apreciar? Ah, é o Tim?... Isso é morrinha de quartel... Ele é reiúno...
Nhô Augusto namorava o Tim Tatu-tá-te-vendo, desertor do Exército e de três milícias estaduais, e que, por isso mesmo e sem querer, caminhava marchando, e, para falar com alguém, se botava de sentido, em estricta posição.
Esta guarda guerreira acompanha o senhor há muito tempo, seu Joãozinho Bem-Bem?
O chefe acertou a sujigola e tossiu, para responder: — Alguns. É tudo gente limpa... Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira de trás do toco não me serve... Gente minha sé mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é sé morte legal!
Epa, ferro!.., — exclamou Nhô Augusto, balançando o corpo. Seu Joãozinho Bem-Bem continuou:
Povo sarado e escovado... Mas eles todos me dão trabalho... Este aqui é baiano, fala mestre... Cabeça-chata é outro, porque eles avançam antes da hora... Não é gente fácil...
Nem goiano, porque não é andejo... E nem mineiro, porque eles andam sempre com a raiva fora-de-hora, e não gostam de parar mais, quando começam a brigar... Mas, pessoal igual ao meu, não tem!
E o senhor também não é mineiro, seu Joãozinho Bem-Bem?
Isso sim, que sou... Sou da beira do rio... Sei lá de onde é que eu sou?!... Mas, por me lembrar, mano velho, não leve a mal o que eu vou lhe pedir: sua janta está de primeira, está boa até de regalo.., mas eu ando muito escandecido e meu estômago não presta p’ra mais...
Se for coisa de pouco incômodo, o que eu queria era que o senhor mandasse aprontar para mim uma jacuba quente, com a rapadura bem preta e a farinha bem fina, e com umas folhinhas de laranjada-terra no meio... Será que pode?
Já, já...Vou ver.
Deus lhe ajude, mano velho.
Enquanto isso, os outros devoravam, com muita esganação e lambança. E, quando Nhô Augusto chegou com a jacuba, interpelou-o o Zeferino, que multiplicava as sílabas, com esforço, e, como tartamudo teimoso, jogava, a cada sílaba, a cabeça para trás: — Pois eu... eu est-t-tou m’me-espan-t-tando é de uma c’coisa, meu senhor: é de, neste jantar, com t-t-tantas c’comerias finas, não haver d-d-duas delas, das mais principais!
Que é que está fazendo falta, amigo?
É o m’molho da sa-mam-baia e a so-p-p’pa da c’c’an jiquinha!
Nhô Augusto sorriu:
Eu agaranto que, na hora da zoeira, tu no pinguelo não gagueja!
Que nada! — apoiou seu Joãozinho Bem-Bem. — Isto é cabra macho e remacheado, que dá pulo em-cruz...
Já Nhô Augusto, incansável, sem querer esperdiçar detalhe, apalpava os braços do Epifânio, mulato enorme, de musculatura embatumada, de bicipitalidade maciça. E se voltava para o Juruminho, caboclo franzino, vivo no menor movimento, ágil até no manejo do garfo, que em sua mão ia e vinha como agulha de coser: — Você, compadre, está-se vendo que deve de ser um corisco de chegador!...
E o Juruminho, gostando.
Chego até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem de vinte braços, com vinte foices para sarilhar!... Deito em ponta de chifre, durmo em ponta de faca, e amanheço em riba do meu colchão!... Está aí nosso chefe, que diga... E mais isto aqui...
E mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegar punhais pelo pico, para desarmar gente em agressão.
Nhô Augusto se levantara, excitado:
Opa! Oi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as clavinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria, p’ra voltearem... E este companheirinho chegador, para chegar na frente, e não dizer até-logo!... E depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lendo, e arma-de-fogo debulhando, e homem mudo gritando, e os do-lado-de-lá correndo e pedindo perdão!…
Mas, aí, Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar de acanhamento; suspirou e perguntou:
Mais galinha, um pedaço, amigo?
— ‘Tou feito.
E você, seu barra?
Agradecido... ‘Tou encalcado... ‘Tou cheio até à tampa!
Enquanto isso, seu Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entornada, não tirava os olhos de cima de Nhô Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir a cachaça, bebeu também, dois goles, e pediu uma das papo-amarelo, para ver:
Não faz conta de balas, amigo? Isto é arma que cursa longe...
Pode gastar as oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...
Deixa a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...
Fez fogo.
Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois... Ferrugem em bom ferro!
Mas, nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou num desânimo, que o não largou mais. Continuou, porém, a cuidar bem dos seus hóspedes, e, como o pessoal se acomodara ali mesmo, nas redes, ao relento, com uma fogueira acesa no meio do terreiro, ele só foi dormir tarde da noite, quando não houve mais nem um para contar histórias de conflitos, assaltos e duelos de exterminação.
Cedinho na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bem agradeceu muito o agasalho, e terminou:
O senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas eu estou lhe prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho, pesado e pago, que o senhor é mas é pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos-da-guarda combinaram, e isso para mim é o sinal que serve. A pois, se precisar de alguma coisa, se tem um recado ruim para mandar para alguém... Tiver algum inimigo alegre, por aí, é só dizer o nome e onde mora. Tem não? Pois, ‘tá bom. Deus lhe pague suas bondades.
Vão com Deus! Até à volta, vocês todos. ‘Té a volta, seu Joãozinho Bem-Bem!
Mas, depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer: — Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem...
Pois então, mano velho, paciência.
Mas nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem!
Aí, o Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se curvou para Nhô Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os outros não escutassem:
Amigo, reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de doença com muitas dores e vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu...
E o bando entrou na estrada, com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxando uma cantiga brava, de tempo de revolução:

O terreiro lá de casa
não se varre com vassoura:
varre com ponta de sabre,
bala de metralhadora...”

Guimarães Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga

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