sábado, 26 de janeiro de 2019

S.

Pergunto a mim mesmo por que escrevi que S. é belo. Nenhum dos dois quadros o mostra assim, e pelo menos o primeiro deveria apresentá-lo favorecido ou, quando pouco, dar dele uma imagem real, reconhecível, com todos os ingredientes lisonjeiros de um retrato que será bem pago. Na verdade, S. não é belo. Mas tem a desenvoltura que eu sempre desejei ter, um rosto de feições vincadas na exata proporção e relação que confere aquele jeito sólido que os homens fisicamente fluidos como eu não podem impedir-se de invejar. Move-se com à-vontade, senta-se numa cadeira sem olhar para ela e fica logo bem sentado, sem mais aquele segundo e terceiro acomodamento que denuncia o constrangimento ou a timidez. Dir-se-ia que nasceu já com todas as batalhas ganhas ou que dispõe, para lutarem em seu lugar, de invisíveis combatentes que vão morrendo cuidadosamente, sem ruído, sem eloquência, alisando o caminho, como se eles próprios fossem simples ramagens de vassoura. Não creio que S. seja rico milionário, naquele sentido que hoje merece a designação, mas tem dinheiro farto. É uma coisa que se sente no próprio modo de acender o cigarro, na maneira de olhar: o rico nunca vê, nunca repara, apenas olha, e acende os cigarros com o ar de quem esperaria que já viessem acesos: o rico acende o cigarro ofendido, isto é, o rico acende ofendido o cigarro, porque não há, ali, acaso, ninguém que lho acenda. Creio que S. teria achado natural que eu me precipitasse ou fizesse o gesto. Mas eu não fumo e sempre tive os olhos suficientemente agudos para desmontar, para desarticular esse (S.) pretensioso movimento que vai do empunhar o isqueiro ao disparar a chama e recolhê-la, primeiro e final movimento de uma voluta que pode ser, conforme os casos, desenho de adulação, de subserviência, de cumplicidade, de convite sutil ou brutal para a cama. S. teria gostado que eu lhe reconhecesse o dinheiro que tem e o poder que lhe adivinho. Contudo, os artistas praticam por tradição alguns privilégios que mesmo quando não usam ou usam ao invés mantêm uma aura romântica de irreverência que confirma o cliente na sua (provisória) condição subalterna e na sua particular superioridade. Nessa relação, algo teatral, cada um representa o seu papel. No fundo, S. ter-me-ia desprezado se eu lhe acendesse o cigarro, mas, muito pior do que isso, teria ficado logrado se eu o tivesse feito. Não houve surpresas para nenhum dos lados, e tudo se passou como convinha.
S. é de estatura mediana, sólido, em forma perfeita (segundo julgo ver) para os quarenta anos que parece. Tem os cabelos brancos suficientes para lhe favorecer o enquadramento do rosto, e daria um esplêndido modelo para publicidade de produtos simultaneamente requintados e campestres, como cachimbos, espingardas, fatos de “tweed” (palavra inglesa que designa um tecido de lã, bastante grosso e muito maleável, fabricado na Escócia), carros luxuosamente utilitários, férias na neve ou na Camargue (França, sul). Tem, em suma, a orografia de rosto que os homens ambicionam porque o cinema americano a divulgou e porque a ela se liga um certo tipo de mulheres de cabelos longos, mas que talvez não valha a pena conservar (o rosto, não as mulheres) por mais tempo do que o "flash" fotográfico: porque a vida é muito mais feita de banalidade, de palidez, de barba mal rapada ou mal crescida, de hálito sem frescura, de cheiro de corpo nem sempre lavado. Talvez este modo de ser cara que S. tem, olhos, boca, queixo, nariz, raiz do cabelo e cabelo, sobrancelhas, tom de pele, vincos, expressão, talvez tudo isto devesse responder culpadamente pelo só borrão confuso que pude transpor para a tela e que nem no segundo retrato ganhou clareza. Não que a parecença lá não esteja, não que o primeiro não seja o fiel retrato desejado e benévolo, não, enfim, que o segundo não pudesse passar por uma análise psicológica em forma de pintura - em ambos os casos só eu sei que ambas as telas continuam brancas, virgens se agradar ao estilo, estragadas para falar com verdade. A mim mesmo volto a perguntar, porém, por que razão, sendo S. esta detestação que descrevi, se instalou em mim a obsessão de compreendê-lo, de descobri-lo, quando outra gente mais interessante, entre mulheres e homens que retratei, me passou pelos olhos e pelas mãos ao longo de todos estes anos de medíocre pintura: não encontro mais explicações que a volta da idade em que estou, que a humilhação subitamente descoberta de ficar aquém da necessidade, dessa outra e mais ardente humilhação de ser olhado por cima, de não ser capaz de responder à ironia com o desprezo ou com sarcasmo. Tentei destruir este homem quando o pintava, e descobri que não sei destruir. Escrever, não é outra tentativa de destruição, mas antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços. Além disso, não posso impedir-me de detestar S. por aquele olhar frio com que relanceou o meu atelier na primeira vez que aqui entrou, por aquele fungar desdenhoso, pelo modo displicente com que me atirou a mão. Sei muito bem quem sou, um artista de baixa categoria que sabe do seu ofício mas a quem falta génio, sequer talento, que tem não mais que uma habilidade cultivada e que percorre sempre os mesmos sulcos, ou pára junto das mesmas portas, mula puxando a carroça duma qualquer costumada distribuição, mas, dantes, quando eu chegava à janela, gostava de ver o céu e o rio, tal como Giotto gostaria, ou Rembrandt, ou Cézanne. Não tinham muita importância para mim as diferenças: quando uma nuvem passava devagar, não havia nenhuma diferença, e quando eu depois estendia o pincel para a tela inacabada tudo podia acontecer, até mesmo a descoberta de um gênio só meu. A paz estava-me garantida, o mais que viesse só poderia ser mais paz ou, quem sabe, a agitação da grande obra. Não esta espécie de rancor manso mas determinado, não esta escavação pelo interior da estátua, não este dente agudo e obstinado como o do cão que morde a trela enquanto olha em redor ansioso, de medo que regresse quem o prendeu. Juntar mais pormenores da fisionomia de S. é inútil. Estão aí os dois retratos que dizem quanto basta para o que menos conta. com outro rigor: que dizem o que não me basta, mas que satisfazem a quem de fisionomias só cure. O meu trabalho vai agora ser outro: descobrir tudo da vida de S. e tudo relatar por escrito, distinguir entre o que é verdade de dentro e pele luzidia, entre a essência e a fossa, entre a unha tratada e a apara caída da mesma unha, entre a pupila azul-baço e a secreção seca que o espelho matinal denuncia no canto do olho. Separar, dividir, confrontar, compreender. Perceber. Exatamente o que não pude alcançar nunca enquanto pintei.
José Saramago, in Manual de pintura e caligrafia

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