Aqui
na capital os doutores são indivíduos quase como os outros:
vestem-se como todo mundo, falam como todo mundo, é possível a
gente desprevenida passar junto a eles sem perceber nenhum sinal que
os denuncie.
Têm,
naturalmente, as suas honras de sabedoria oficial no consultório ou
na repartição, mas findo o trabalho, escondem o anel, dobram a
carta e vão para os cafés discutir fitas do Floriano, literatura,
sociologia e outras habilidades. Um sujeito da rua grita para eles:
— Oh
Théo! Oh Moacir! Como vai, Zé Lins?
E
os que jogam dados na mesa próxima ficam sem saber que um daqueles
fregueses é especialista em moléstias de crianças, outro ensina
física, o terceiro escreve romances.
São
bem razoáveis os doutores da capital.
Os
do interior são muito diferentes deles. Dogmáticos, eriçados,
carrancudos.
A
diferença explica-se. O bacharel, o médico ou o engenheiro que mora
na cidade encontra frequentemente, dentro da sua classe ou fora dela,
homens sabidos. Daí uma aproximação, uma familiaridade útil a
todos.
No
interior não é assim. O rapaz que salta da academia para a roça
sente-se isolado. Vai com a cabeça cheia de fórmulas, algum
pensamento e muito bons desejos: quer abrir uma escola, criar o
horrível grêmio literário, fundar um desses pequeninos jornais
onde os talentos cambembes engatinham. Mas só percebe em redor
brutalidade e chatice. O pensamento e os desejos encolhem-se.
Busca
fugir à brutalidade ambiente, procura alguma saliência naquela
chatice toda. Nada.
Na
primeira visita que faz ao prefeito ouve o sermão declamado no
domingo, sermão que o vigário há dez anos profere todas as
semanas, com muito fervor e pouco êxito. A mulher do prefeito
defende o vigário. Mas o prefeito é livre-pensador. Não se
entendem. E o visitante sai zonzo.
É
atraído por umas risadas enormes. Anda meio quilômetro e afinal
descobre um malandro ocupado em fazer relatório dos amores ilícitos
da localidade, história complicada e antiga a que a imaginação
tacanha do narrador todos os dias acrescenta um pormenor.
Afasta-se,
enjoado.
— Gente
estúpida! Gente ruim!
Convidam-no
para um casamento. Vai, constrangido. No meio da festa dão-lhe a
palavra. Se é um bacharel afoito e linguarudo muito bem. Mas às
vezes é agrônomo ou cirurgião-dentista e confessa honestamente que
não sabe fazer discursos. Está arrasado: daí em diante não
inspira nenhuma confiança.
O
matuto é um ser que fala abundantemente. Dizendo as coisas mais
simples, usa tiradas absurdas, circunlóquios, que não têm fim.
Acha que os outros devem ser também tagarelas.
Para
ele qualquer doutor tem obrigação de saber fazer tudo:
requerimentos, defesas no júri, correspondências para o jornal,
demarcações de terra, extração de dentes, eleições, orçamentos
municipais e receitas de remédios.
Assim,
o letrado oficial que vive em cidade pequena, se não quer passar por
ignorante, entrega-se a ocupações numerosas. Torna-se um charlatão.
Com
aprumo que faz pena, diz cinicamente: “Para matuto é isto: ensinar
o que ele sabe e comer o que ele tem.”
Muita
arrogância e uma frase latina: dura lex sed lex ou outra. Se
o latim falha, agarra-se ao francês.
Os
roceiros ficam embasbacados. E o doutor triunfa.
Depois
que arranja um conceito regular, fala pouco para não se comprometer:
sorri, gesticula.
É,
naturalmente, o consultor da povoação onde reside. Se lhe fazem
pergunta difícil, evita o obstáculo usando expressões arrevesadas.
Esquece
as fórmulas que trouxe da Academia, mas os fragmentos de algumas
ficam, inúteis e sempre repetidos, a adornar-lhe os restos do
espírito.
Admira
os personagens consagrados pelo artigo de fundo, tem horror à poesia
sem rima, acata o governo e a oposição, gosta do progresso e de
dois em dois anos manda fazer uma roupa de casimira e torna-se
importantíssimo.
Escrevendo
arrazoados, examinando doentes ou fabricando xaropes, emprega José
de Alencar, Rui Barbosa, Castro Alves e Euclides da Cunha.
O
matuto baba-se por ele, e quando é rico, tenta casá-lo com uma
filha, que o grande desejo do tabaréu é ter um parente doutor.
Busca tratá-lo familiarmente, mas isto é impossível. Julga-se
muito pequeno. Dirigindo-se a ele, diz senhor; ele, em
resposta, diz você.
Esse
tratamento leva os homens da aldeia a sacrifícios.
Um
soletra quatro livros pacientemente e faz-se rábula ou tabelião. O
doutor auxilia-o.
Outro
estabelece loja de fazenda, ganha dinheiro. O doutor visita-o depois
do jantar e conta anedotas, com superioridade.
O
negociante passa da loja para o armazém, arranca uma fortuna do
couro do mandioqueiro. O doutor continua a olhá-lo de cima para
baixo.
O
desgraçado mete-se em política, transforma-se em prefeito e, se há
Constituição, vira deputado, com o favor do governo. Diante do
doutor, é sempre mesquinho. Acredita no que ele diz, deixa-se
enganar candidamente. Declara, com uma espécie de orgulho:
— Doutor
Fulano risca e eu corto.
É
esse doutor, parlapatão e ignorante, que domina as cidadezinhas do
interior. Lá não há livros, e os jornais, raros, servem para se
embrulhar sabão, nas bodegas.
Quando
o governo conhecer bem isso, cortará muitas despesas inúteis.
E
a opinião pública, pelo menos na aldeia, estará com ele.
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Jornal de Alagoas, Maceió,
11/06/1933)
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