Deem
ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim...
“Sairei
de mim mesmo e irei ao encontro das flores humildes dos caminhos e
das lentas aves dos crepúsculos, cujo pipilo suspende na paisagem
uma lágrima que nunca se derrama. Sairei de mim mesmo em busca de
mim mesmo, em busca de minha imagem perdida nos abismos do desespero,
minha imagem de cuja face já não me lembro mais...
“Sairei
de mim mesmo em busca das melodias esquecidas na memória, em busca
dos instantes de total abandono e beleza, em busca dos milagres ainda
não acontecidos...
“Que
eu seja novamente aquele que ergue do chão o pássaro ferido e, no
calor de sua mão, dá-lhe de morrer em paz; aquele que, em sua
eterna peregrinação em busca da vida, ajuda o camponês a consertar
a roda do seu carro...
“Que
me seja dado, em minhas andanças, restituir a cada ser humano o
consolo de chorar dias de lágrimas; e depois levá-lo lá onde
existe a luz e chorar eu próprio ante a beleza do seu pranto ao
sol...
“Possa
eu mirar novamente os pélagos e compreendê-los; atravessar os
desertos e amá-los. Possa eu deitar-me à noite na areia das praias
e manter com as estrelas em delírio o colóquio da eternidade. Possa
eu voltar a ser aquele que não teme ficar só consigo mesmo, numa
dura solidão sem deliquescência...
“Bem
haja o meu irmão no meu caminho, com as suas úlceras à mostra, que
a ele eu hei de curar e dar abrigo no meu peito, Bem haja no meu
caminho a dor do meu semelhante, que a ela estarei desvelado e
atento...
“Seja
a mulher a mãe, a esposa, a amante, a filha, a bem-amada do meu
coração; possa eu amá-la e respeitá-la, dar-lhe filhos e
silêncios. Possa eu coroá-la de folhas da primavera em seu
nascimento, seu conúbio e sua morte. Tenha eu no meu pensamento a
ideia constante de querê-la e lhe prestar serviço...
“Que
o meu rosto reflita nos espelhos um olhar doce e tranquilo, mesmo no
mais fundo sofrimento; e que eu não me esqueça nunca que devo estar
constantemente em guarda de mim mesmo, para que sejam humanos e
dignos o meu orgulho e a minha humildade, e para eu cresça sempre no
sentido de Tempo...
“Pois
o meu coração está antes de tudo com os que têm menos do que eu,
e com os que, tendo mais do que eu, nada têm. Pois o meu coração
está com a ovelha e não com o lobo; com o condenado e não com o
carrasco
“E
que este seja o meu canto e o escutem os surdos de carinho e de
piedade; e que ele vibre com um sino nos ouvidos dos falsos apóstolos
dos falsos apóstatas; pois eu sou o homem, ser de poesia, portador
do segredo e sua incomunicabilidade - e o meu largo canto vibra acima
dos ócios e ressentimentos, das intrigas e vinganças, nos espaços
infinitos...”.
Deem
ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim, que sua
voz está rouca de tanto insulto inútil e seu coração triste, de
tanta vã mentira que lhe ensinaram.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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