Estive
em Salvador, para uma mesa-redonda sobre Jorge Amado, e encontrei um
querido amigo de infância, o médico Luiz Fernando. Juntos,
visitamos sua mãe, dona Ilnah. Na sala de estar, deparo com uma foto
de seu Fernando, pai de meu amigo, falecido em 2001. Datada dos anos
1960, ela mostra um homem jovial, capturado em um instante de
introspecção. Pensei, secretamente, que na foto ele se parece mais
com meu amigo Luiz Fernando do que o próprio Luiz Fernando de hoje.
Eu também ando muito diferente de mim.
Diante
da fotografia, dona Ilnah se lamenta por não ter atendido um dos
últimos desejos do marido, que, durante anos, trabalhou na antiga
Varig. Pouco antes de morrer, Fernando convidou a mulher para uma
viagem a Nova York. Dona Ilnah argumentou que lhe faltava ânimo.
“Nem precisamos ir a Manhattan”, ele disse. “Chegamos ao
aeroporto, almoçamos por lá mesmo, esperamos o voo da noite e
retornamos.” Agora, se lamenta de não ter atendido o incomum
desejo do marido. “Se eu soubesse que ele morreria logo depois,
teria viajado”, me diz.
Voltei
de Salvador para Curitiba lendo, com grande prazer, as crônicas
reunidas em O espalhador de passarinhos, novo livro de
Humberto Werneck (Edições Dubolsinho, Sabará, MG). Em um canto de
minha cabeça, continuava a ruminar a história relatada por Dona
Ilnah – ela própria, uma crônica que não foi escrita. O que
desejava o pai de meu amigo? Nova York já não o interessava. Seu
desejo (como o dos passarinhos) era um só: o de, pela última vez,
se entregar à leveza de um voo.
Também
Humberto ostenta o que chamo de um espírito flutuante. Às vezes é
irônico, outras é até mordaz, mas nunca abdica do amor pelas
coisas do mundo. Só quem atribui um grande valor à vida desenvolve
a atenção sutil que ele tem. Só escreve boas crônicas quem aceita
as nuances da existência. O bom cronista despreza os grandes temas e
prefere as migalhas oferecidas pelo cotidiano. Prefere se elevar e
voar a agarrar e prender.
Infelizmente,
muitos cronistas de hoje sofrem do que Humberto, em uma tirada
genial, chama de “vertigem de sobreloja”. Assim explica sua tese.
“Imagine o camarada que, tendo subido um modesto lance de escadas,
já se considera no topo do edifício”, compara. “Ainda não fez
jus ao inebriamento lisérgico de uma genuína vertigem de altura,
pois mal chegou à sobreloja – mas já começa a gastar por conta.”
Como exemplo notável, ele rememora o episódio protagonizado pelo
deputado cearense Paes de Andrade. Chamado a substituir o presidente
José Sarney por uns poucos dias, “lotou o avião governamental
para desembarcar triunfalmente em Mombaça, sua cidade natal”. A
rápida interinidade foi sua sobreloja.
viagem
triunfal de Paes de Andrade encena o que João Cabral de Melo Neto
chamava de “retórica de deputado”. Excesso, ostentação, pompa.
Já seu Fernando, o pai de Luiz Fernando, fez o contrário: sonhou
com um último voo a Nova York não para se exibir em um desembarque
triunfal ou para se pavonear pela Quinta Avenida. Não queria, nem
mesmo, sair do aeroporto. Seu único desejo era voar. Voar
delicadamente sobre as coisas, experimentar o prazer da leveza,
rondar a realidade – como fazem os grandes cronistas. Como faz, com
arte e sabedoria, Humberto Werneck.
Imitando
o pai, Hugo, personagem do relato de abertura, Humberto pratica a
arte de borrifar a realidade com afetos. Seu Hugo tinha o hábito de
colher passarinhos onde eles eram abundantes, “para semeá-los onde
vão escasseando”. Não foi um criador, foi mais um “descriador”
de pássaros. Penso em Rubem Braga, em José Carlos Oliveira, em
Paulo Mendes Campos. Que outra coisa praticaram senão a arte de
liberar o mundo das amarras da arrogância? O que é a crônica –
gênero do eu e da confissão, mas também do mundo e da invenção –
senão um artifício que nos leva a dar rasantes sobre o mundo, não
como quem o agride e domina, mas como alguém que o acaricia? Em vez
da “vertigem de sobreloja”, que só afasta da realidade e dos
outros, o doce bordejar da existência.
Mesmo
sendo o gênero do eu, a crônica não é o lugar da exibição e do
triunfo. Penso em Rubem Braga, de bermudas e chinelos, tratando de
seus passarinhos, na contramão da fama literária. Falhar: eis tudo
o que um cronista deve saber. Humberto, ele mesmo, admite: “É
sabida a minha incompetência para administrar o que quer que seja, a
começar por mim mesmo”. Não o gênero da glória e da empáfia,
mas o gênero da delicadeza e do fracasso. Um gênero, enfim, do
humano. Cronistas são homens que aprendem a olhar. Homens que
praticam o que Humberto Werneck chama de “olhares que iluminam”.
A
crônica, ele nos mostra ainda, é uma “viagem prazerosa e vadia”
pelo rés do chão. Viagem rasteira e serena, sem preparativos e sem
agendas. E, quando voa – e voar faz parte também de sua natureza
–, o cronista imita seu Fernando, o pai de meu amigo baiano, para
quem o próprio voo é mais importante que o destino. O cronista vê
não o que os outros não veem, mas o que os outros, mesmo vendo,
desprezam. O fotógrafo Antonio Augusto Fontes – um dos personagens
de Humberto – é, por exemplo, um cronista.
Certo
dia, Humberto o acompanhou à casa do poeta João Cabral de Melo Neto
para uma entrevista. “Reparo que Antonio Augusto, discreto,
silencioso, obstinado, se contorce na perseguição de um ângulo”,
escreve. O fotógrafo, enfim, parece encontrar o que busca. Humberto
nada vê. Só entende quando recebe a fotografia. Mostra Cabral
sentado em sua poltrona, tendo às costas, abertas, duas escadas de
pedreiro. Escadas miseráveis que Antonio Augusto “transfigurou
para criar a sugestão de etéreo par de asas”.
De
novo as asas, de novo o voo. João Cabral voando com as asas que não
tinha na foto de Antonio Augusto. Seu Fernando, com o desejo de voar
para chegar a lugar nenhum. Seu Hugo, o pai de Humberto, espalhando
passarinhos pelos céus e, assim, voando um pouco com eles. Todos
cronistas da melhor linhagem. Não homens orgulhosos que, cheios de
si, desmaiam nas sobrelojas. Mas homens, como Humberto, que conhecem
seus limites e deles fazem sua alegria.
José
Castello, in Sábados inquietos
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