domingo, 23 de dezembro de 2018

A minha pátria é a minha língua portuguesa

Na minha infância acreditava ser gato. Eu não pensava; eu era um gato. Para testemunho deste delito de identidade, meus pais guardam provas documentais: fotos minhas comendo e dormindo entre os bichos. Fui ensinado a afastar-me do gato que desejava tomar posse de mim.
Depois me inventei outros bichos. Um pequeno leopardo que tivemos uns dias no nosso quintal me fez ser felino. No leopardo eu via a criatura sem criação, divina e suficiente, não querendo nem desdenhando. Perante ele, o meu ser humano era pouco, imperfeito, carente. Mas o nosso leopardito foi levado para um destino longe e o sonho desvaneceu.
Ser humano foi talvez o que nunca aspirei. Ao fim de muita insistência lá me resignei. Mas, ao menos fosse bombeiro. Cedo aprendemos o mundo como uma casa ameaçada de incêndio.
Que chamas são essas que assaltam o nosso lugar de infância e devoram esse tempo divino? Pois, como tantos outros eu aspirava ser bombeiro, corrigindo essa fatalidade, salvando não apenas pessoas, mas a sua condição de moradores na eternidade.
Mas estava escrito: eu havia de ser homem. Educaram-me. Isto é, fui aprendendo a ter medo de querer ser outra coisa. Encontrei refúgio nas pequenas estórias. Sonhar, sonhar-me, esquecer-me, vencer-me sem ter que lutar contra nada. Através do sonho eu já havia viajado de identidade: já fora bicho, bombeiro, e até pessoa. Sem saber eu já estava escritor, portador assintomático dessa doença chamada poesia. Estava condenado a ter pátria nesse tempo inicial e iniciador. A infância não é, neste sentido, um tempo mas um ato de fé, uma devoção.
O que tem a língua a ver com estas lembranças? Para manter residência na infância necessito de uma língua em estado de infância. Essa é a minha aposta quando escrevo. Tenho a meu favor o facto de Moçambique ser ele próprio um lugar em infância, uma nação em flagrante invenção de si e da sua língua de identidade. Estranha coincidência: a minha pátria é-me contemporânea. Fui nascendo com ela, ela está nascendo comigo. Eu e a minha terra somos da mesma geração.
A minha língua portuguesa, repito a minha língua portuguesa, é a pátria que estou inventando para mim. Essa língua nômade não a quero perder, não quero ficar exilado desse tempo em que não havia o tempo. Cito um habitante de Tizangara, um lugar em que voavam flamingos. Dizia assim: “Não é de um tempo que tenho saudade. Saudade tenho é de não haver tempo nenhum”.
A escrita é uma casa que eu visito, mas onde não quero morar. O que me instiga são as outras línguas e linguagens, sabedorias que ganhamos apenas se de nós mesmos nos soubermos apagar. Da minha língua materna eu aspiro esse momento em que ela se desidioma, convertendo-se num corpo sem mando de estrutura ou de regra. O que quero é esse desmaio gramatical, em que o português perde todos os sentidos.
Nesse momento de caos e perda, a língua é permeável a outras razões, deixa-se mestiçar e torna-se mais fecunda. A língua é, só então, viagem viajada, namoradeira de outras vozes e outros tempos.
Se a razão é a poesia — e a minha causa é só essa, a criação poética — então, o importante não é tanto a língua, nem sequer o quanto ela nos é materna. Mais importante é essa outra língua que falamos mesmo antes de nascermos. Nesse registo está a porta e o passaporte em que todos nos fazemos humanos, fabricadores da palavra e, com igual mestria, criadores de silêncio.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Nenhum comentário:

Postar um comentário