Na
minha infância acreditava ser gato. Eu não pensava; eu era um gato.
Para testemunho deste delito de identidade, meus pais guardam provas
documentais: fotos minhas comendo e dormindo entre os bichos. Fui
ensinado a afastar-me do gato que desejava tomar posse de mim.
Depois
me inventei outros bichos. Um pequeno leopardo que tivemos uns dias
no nosso quintal me fez ser felino. No leopardo eu via a criatura sem
criação, divina e suficiente, não querendo nem desdenhando.
Perante ele, o meu ser humano era pouco, imperfeito, carente. Mas o
nosso leopardito foi levado para um destino longe e o sonho
desvaneceu.
Ser
humano foi talvez o que nunca aspirei. Ao fim de muita insistência
lá me resignei. Mas, ao menos fosse bombeiro. Cedo aprendemos o
mundo como uma casa ameaçada de incêndio.
Que
chamas são essas que assaltam o nosso lugar de infância e devoram
esse tempo divino? Pois, como tantos outros eu aspirava ser bombeiro,
corrigindo essa fatalidade, salvando não apenas pessoas, mas a sua
condição de moradores na eternidade.
Mas
estava escrito: eu havia de ser homem. Educaram-me. Isto é, fui
aprendendo a ter medo de querer ser outra coisa. Encontrei refúgio
nas pequenas estórias. Sonhar, sonhar-me, esquecer-me, vencer-me sem
ter que lutar contra nada. Através do sonho eu já havia viajado de
identidade: já fora bicho, bombeiro, e até pessoa. Sem saber eu já
estava escritor, portador assintomático dessa doença chamada
poesia. Estava condenado a ter pátria nesse tempo inicial e
iniciador. A infância não é, neste sentido, um tempo mas um ato de
fé, uma devoção.
O
que tem a língua a ver com estas lembranças? Para manter residência
na infância necessito de uma língua em estado de infância. Essa é
a minha aposta quando escrevo. Tenho a meu favor o facto de
Moçambique ser ele próprio um lugar em infância, uma nação em
flagrante invenção de si e da sua língua de identidade. Estranha
coincidência: a minha pátria é-me contemporânea. Fui nascendo com
ela, ela está nascendo comigo. Eu e a minha terra somos da mesma
geração.
A
minha língua portuguesa, repito a minha língua portuguesa, é a
pátria que estou inventando para mim. Essa língua nômade não a
quero perder, não quero ficar exilado desse tempo em que não havia
o tempo. Cito um habitante de Tizangara, um lugar em que voavam
flamingos. Dizia assim: “Não é de um tempo que tenho saudade.
Saudade tenho é de não haver tempo nenhum”.
A
escrita é uma casa que eu visito, mas onde não quero morar. O que
me instiga são as outras línguas e linguagens, sabedorias que
ganhamos apenas se de nós mesmos nos soubermos apagar. Da minha
língua materna eu aspiro esse momento em que ela se desidioma,
convertendo-se num corpo sem mando de estrutura ou de regra. O que
quero é esse desmaio gramatical, em que o português perde todos os
sentidos.
Nesse
momento de caos e perda, a língua é permeável a outras razões,
deixa-se mestiçar e torna-se mais fecunda. A língua é, só então,
viagem viajada, namoradeira de outras vozes e outros tempos.
Se
a razão é a poesia — e a minha causa é só essa, a criação
poética — então, o importante não é tanto a língua, nem sequer
o quanto ela nos é materna. Mais importante é essa outra língua
que falamos mesmo antes de nascermos. Nesse registo está a porta e o
passaporte em que todos nos fazemos humanos, fabricadores da palavra
e, com igual mestria, criadores de silêncio.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
Nenhum comentário:
Postar um comentário