quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A baleia como um prato

Que um mortal se alimente da criatura que alimenta sua lamparina, e, que, como Stubb, coma o animal sob sua própria luz, como se pode dizer; é uma coisa que parece tão estranha que se faz necessário entrar um pouco na história e na filosofia desse fato.
Consta dos livros que, há três séculos, a língua da Baleia Franca era considerada uma deliciosa iguaria na França, chegando a alcançar altos preços. Também se diz que, no tempo de Henrique VIII, um certo cozinheiro da Corte recebeu uma recompensa generosa por ter inventado um molho excelente para acompanhar as marsopas grelhadas, que, como se há de lembrar, são um tipo de baleia. As marsopas, de fato, são até hoje consideradas um prato refinado. A carne é preparada em bolinhos do tamanho aproximado de bolas de bilhar, e quando bem temperadas e condimentadas podem passar por bolinhos de tartaruga ou de vitela. Os monges antigos de Dunfermline apreciavam-nas muitíssimo. A Coroa tinha-lhes feito uma grande doação de marsopas.
Fato é que, entre os seus caçadores, pelo menos, a baleia teria sido por todos considerada um prato nobre, não fosse ela tão abundante; mas, quando você chega a se sentar diante de um bolo de carne de quase cem pés de comprimento, ele leva embora seu apetite. Apenas um sujeito tão sem preconceitos quanto Stubb consegue, hoje em dia, desfrutar das baleias cozidas; mas os Esquimós não são tão exigentes. Todos sabemos como baseiam sua vida nas baleias, possuindo raros e antigos estoques de um óleo de primeira linha. Zogranda, um dos seus mais afamados médicos, recomenda tiras de gordura para as crianças, por serem muito saborosas e nutritivas. Isso me traz à mente que alguns Ingleses – há muito tempo deixados por acaso na Groenlândia por um navio baleeiro – se alimentaram por meses a fio dos pedaços bolorentos que haviam sido deixados em terra depois de retirada a gordura. Os baleeiros Holandeses chamam esses despojos de “fritadas”; com as quais guardam de fato grande semelhança, pois são marrons e tostadas, com um cheiro semelhante ao das rosquinhas ou bolinhos fritos que as donas-de-casa de Amsterdã fazem, quando frescos. Têm um aspecto tão apetitoso que o mais sóbrio dos estrangeiros não consegue se conter.
No entanto, o que deprecia ainda mais a baleia como um prato civilizado é a sua gordura excessiva. Ela é o touro premiado do mar, gordo demais para ser apreciado. Veja sua corcova, que poderia ser uma iguaria tão requintada quanto a do búfalo (que é considerada um prato raro), não fosse uma pirâmide tão sólida de gordura. Mas o espermacete, que cremoso e suave ele é; igual à polpa transparente e gelatinosa de um coco no terceiro mês de sua maturação, porém gorduroso demais para servir de substituto à manteiga. No entanto, muitos baleeiros têm um método de combinar a gordura com outras substâncias e então ingeri-la. Nas longas vigílias noturnas em que se derrete a gordura, é comum ver um marinheiro mergulhar seu biscoito numa enorme frigideira e deixá-lo ali, fritando por algum tempo. Várias ceias gostosas eu fiz desse modo. No caso de um Cachalote pequeno, o cérebro é tido em conta como iguaria. A caixa craniana é quebrada com um machado, e os dois lobos arredondados e esbranquiçados são retirados (lembram exatamente dois grandes pudins), misturados com farinha, e cozidos até que se tornem um delicioso manjar, com sabor semelhante ao da cabeça de vitela, que é prato estimado por alguns gastrônomos; e todo mundo sabe que alguns janotas entre os gastrônomos, de tanto comer o cérebro da vitela, pouco a pouco começaram a experimentar seus próprios cérebros, para conseguir diferenciar a cabeça da vitela de suas próprias, o que requer um extraordinário discernimento. Esse é o motivo pelo qual um janota de ar inteligente diante de uma cabeça de vitela é, de certo modo, uma das cenas mais tristes que se pode ver. A cabeça parece lançar-lhe algum tipo de reprimenda, como se dissesse “Et tu Brute!”. Talvez não seja tanto por causa da excessiva gordura da baleia que os homens da terra pareçam considerar com nojo a possibilidade de comê-la; tal sensação deriva, de certo modo, da consideração outrora mencionada: i.e., do fato de comer um animal marinho recentemente morto, e usando-o, para tanto, também como iluminação. Mas não resta dúvida de que o primeiro homem que matou um boi tenha sido considerado um assassino; talvez tenha sido enforcado; e, se tivesse sido levado a julgamento por bois, certamente o teria sido; e certamente o teria merecido, se é que algum assassino merece tal fim. Vá ao mercado de carnes, num sábado à noite, e veja as multidões de bípedes vivos de olhos vidrados nas longas filas de quadrúpedes mortos. Esse espetáculo não tira um dos dentes do maxilar dos canibais? Canibais? Quem não é um canibal? Garanto a você que o Juízo Final será mais tolerante com um providente Fidjiano que salgou um missionário magro em sua adega para se prevenir contra a fome do que contigo, gourmand civilizado e esclarecido, que prendes os gansos no chão e te refestelas com seus fígados dilatados em teu paté de foie gras.
Mas Stubb, ele come a baleia à luz de seu próprio óleo, não? E isso é somar insulto à injúria, não é? Olhe para o cabo de sua faca, meu caro gourmand civilizado e esclarecido a comer um rosbife, do que é feito o cabo? – do quê, senão dos ossos do irmão do mesmo boi que você está comendo? E com o que você palita os dentes, depois de devorar aquele ganso gordo? Com uma pena da mesma ave. E com que pena o Secretário da Sociedade de Supressão de Crueldade aos Gansos escreve suas circulares? Há apenas um ou dois meses essa sociedade tomou a decisão de patrocinar somente penas de aço.
Herman Melville, in Moby Dick

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