Viajo
porque preciso, volto porque te amo (direção de Karim Aïnouz e
Marcelo Gomes) foi filmado no interior de cinco estados do Nordeste.
A ideia inicial dos dois cineastas era fazer um documentário sobre
as feiras do sertão. Entre a primeira e a última filmagem houve uma
interrupção de nove anos, e a montagem final é, de fato, uma
ficção sobre a viagem e o amor, sem perder uma dimensão crítica
sobre a sociedade brasileira. O filme transcende o registro de mero
documento, transmite emoção ao espectador e convida-o a refletir
sobre a região e as pessoas que nela vivem e trabalham.
Nessa
versão final os diretores introduziram a voz de um geólogo (José
Renato) que faz uma pesquisa de campo para a construção de um
canal. Ele é o personagem central do filme, mas não vemos qualquer
traço físico dele, apenas ouvimos sua voz, uma voz em vários
registros de entonação, como se fosse um diário falado, em cujo
centro situa-se Galega, ex-mulher de José Renato. Esse é um dos
achados do filme: um personagem ausente, que o espectador imagina.
Mas ele está presente através de sua voz e também de seu olhar. É
como se ele estivesse atrás da câmera, atento ao que vê e observa.
A voz não é menos importante que a imagem: ambas se complementam,
alternando a subjetividade do narrador com a vida de cada lugar
visitado.
Outro
achado foi relacionar o estudo do solo com a desilusão amorosa. Uma
sondagem no interior da terra árida, cujo contraponto é uma
sondagem da alma das personagens. Dessa confluência insólita
resulta uma narrativa tensa, de grande beleza, em que a necessidade
de uma viagem profissional relaciona-se com o impasse de uma relação
amorosa. Mas há ainda a solidão e o desencanto que marcam a vida de
nordestinos pobres, de prostitutas desvalidas, mulheres que, a meu
ver, mantêm algum parentesco com Iracema, a protagonista do grande
filme de Jorge Bodanzky.
Apesar
dos deslocamentos do narrador, Viajo porque preciso… é um
filme sem muita ação, ou sem muitas peripécias. Durante sua
viagem, o narrador alterna o trabalho enfadonho e contrariado de
geólogo com as reminiscências, confissões e desabafos de uma
história passional fracassada. A desilusão do narrador e os anseios
de uma das prostitutas convergem para um impasse, que é individual
e, até certo ponto, coletivo.
Como
acontece com os bons romances, que se revelam com mais intensidade ao
ser relidos, esse filme convida o espectador a assisti-lo duas vezes.
Na segunda, você une os pontos aparentemente soltos das imagens e do
relato do geólogo, e percebe que na sequência surpreendente das
cenas finais há uma saída para o enfado e o desencanto do narrador.
Ainda assim, prevalece uma sensação de impasse para as pessoas que
falam de sua vida, algumas também viajantes ocasionais, romeiros
extasiados pela fé, mulheres que sonham com uma vida melhor, ou
pobres artistas circenses, todos eles “brasileiros que nem eu”,
como disse Mário de Andrade num poema sobre os seringueiros da
Amazônia.
Irandhir
Santos, o único ator profissional, é invisível, mas sua voz em off
— o fluxo oral do que ele vê, sente e reflete — é suficiente
para que o espectador participe de sua viagem e compartilhe seu
drama, seus anseios e suas frustrações. E nisso ele se assemelha a
uma complexa personagem de ficção.
Numa
ótima entrevista ao crítico e escritor Jean-Claude Bernardet,
Marcelo Gomes ressalta que “o som dá dinamismo à viagem, ele muda
de um momento para outro […] E essa dinâmica internaliza mais essa
viagem”. Karim Aïnouz assinala que o cinema tem um potencial
literário: “o poder de fazer a gente imaginar […] e as palavras
vêm de alguma maneira iluminar uma imagem”.
De
fato, essa voz se remete a outra viagem, a uma busca interior que é
uma tentativa de compreender a si mesmo. Esse diário falado é
também matriz de uma história que dialoga com o mundo do sertão e
com o espectador. Nem sempre há uma sincronia entre a voz e as
imagens. Às vezes a câmera, em silêncio, foca uma paisagem, o
ambiente paupérrimo de uma casa, um rito religioso, de modo que o
espectador concentra sua atenção nessas imagens, que também contam
uma história. Em alguns momentos os sertanejos falam de seus sonhos
numa região do Brasil em que a modernidade e a euforia do consumo
ainda são quimeras. Ou sonhos irrealizados. À viagem contrariada,
vazia de vontade — Viajo porque preciso —, contrapõe-se
ironicamente o desejo da volta para um lugar onde o amor é dúvida
ou ilusão.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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