“Purificam-se
manchando-se com outro sangue, como se alguém, entrando na lama, em
lama se lavasse.”
[Aristócrito]
[Aristócrito]
Para
Santiago Nazarian
Eu
tive um dia cujo sol foi da cor do desespero e a lua, a lua está
embaçada e um tanto desgastada, e não tem outra opção senão
refletir a luz do sol, e outra vez há mais desespero sobre minha
cabeça. Ainda bem que não preciso matar a lua ou o sol todos os
dias, mas se tivesse, eu resplandeceria a sua cor.
Sigo
calado, esgotado e embaçado como a lua que esforça-se por
desaparecer. Certamente, se vivesse nas alturas eu desapareceria
quando as coisas atingissem essa tonalidade.
Cutuco o nariz nervoso, porque posso sentir resíduos de pó agarrado nos pelos; do punhadinho do pó branco depositado sobre a mesa do quarto, aquela pequena montanha mágica que desci esquiando por suas depressões, esquivando-me de suas falhas. Com o cabo da colher, a montanha transformou-se em trilhas paralelas e consegui construir três fileiras curtas. Trilhas breves, limitadas como a vida para algumas pessoas.
Cutuco o nariz nervoso, porque posso sentir resíduos de pó agarrado nos pelos; do punhadinho do pó branco depositado sobre a mesa do quarto, aquela pequena montanha mágica que desci esquiando por suas depressões, esquivando-me de suas falhas. Com o cabo da colher, a montanha transformou-se em trilhas paralelas e consegui construir três fileiras curtas. Trilhas breves, limitadas como a vida para algumas pessoas.
Tapo
a narina direita e arrasto como um porco o focinho sobre a mesa.
Absorvo o estado bruto da liberdade, da mudança e apago da mesa os
três caminhos que criei, e já não há mais caminhos ou rastros, eu
os absorvi e tornei-me o próprio, o dono de minhas trilhas.
Isso
pode ser daninho e doce feito mel apodrecido em dias com o sol da cor
do desespero. Estou com fome e devoraria qualquer substância
orgânica nessa hora. Não me lembro de ter comido nada durante todo
o dia. Talvez agora tivesse um almoço. Nu.
Através
de uma janela pouco maior que minha televisão vinte polegadas, no
centro da sala é onde vejo meu tempo escoar. Ter um horizonte com
menos de vinte polegadas não deve ser o sonho de ninguém e só
entendemos isso quando nos acordam. Um terrível pesadelo é ótimo
para te fazer acordar. O sono da razão pode produzir monstros, mas o
sono da inabilidade pode te paralisar. As imagens ali são sempre do
meu próprio tempo acelerado, um desperdício. Prefiro os monstros.
Sempre os preferi e comecei a me afeiçoar a eles, meus monstros
entranhados no lago do meu espírito, tão sombrio que quando retorno
à superfície, o ar rarefeito me deixa anestesiado.
Não
falo de amor ou ódio, falo dos monstros que me deixam acordado. Que
me fazem avançar, sombras que me perseguem, rastejando, tentando
abocanhar meu calcanhar. E eu posso sentir a nuvem de fuligem espessa
armazenada sobre minha cabeça. É a lua, entende? Esse maldito
satélite sem luz própria que traz o desespero do sol, do péssimo
dia que tive. Quanto mais eu ando, mais percebo que a lua corre
depressa. Não dá para alcançá-la e as estrelas já estão
mortas... brilham, mas não existem mais. Mortas imortais vivendo a
morte de uns, morrendo a vida de outros tantos.
Olho
para meus pés e vejo que esqueci de trocar os sapatos. Meus sapatos
manchados de sangue que secou faz tempo, quando ainda fazia sol e
quando eu ainda pensava se devia ou não matar aquele monstro.
Monstros que te acusam, que te amam e te esquecem, que te fazem
sofrer, mas não falo de amor, isso não cabe em minhas linhas, nem
no meu coração ou no mais profundo lago do espírito. Pouca coisa
cabe aqui e quando me sufocam eu afundo tudo para o lago, na parte
mais sombria e esquecida, depois lavo minhas mãos, troco meus
sapatos e o sangue é sempre lavado, levado pelas águas.
Os
monstros são daninhos e doces feito mel apodrecido, alguns o chamam
de amor ou ódio, para mim mel estragado. Frias mandíbulas
trituradoras no seu encalço. Não deixaria que alguém me fizesse
isso de novo, te esquecem e te fazem sofrer. Eu a quero ainda, e só
consigo pensar que meus sapatos carregam um pouco dela. Suas hemácias
ressecadas. E por todos os lados eu a vejo como sombras se cruzando,
mas a culpa é da lua que insiste em manter tudo aceso. Eu posso
fazer novamente, afogar mais alguns monstros até que as nuvens
decidam escondê-la, eu posso avançar mais alguns passos enquanto
suspiro minha possível maldade.
Nunca
me arrependo. Sempre sigo em frente, tossindo pedaços do meu pulmão
doente, embalado por bebida barata. O caos da expansão do meu
microcosmo, esse tipo de necessidade meramente humana. Predadores não
tiram férias, resvalam na consciência de um possível ajuste, mas
nunca deixam de acossar. Seu sangue em meus sapatos engraxados ontem;
estavam limpos e reluzentes como fazia o sol quando você derramou-se
sobre eles. E ainda a vejo e continuo avançando sobre as sombras que
me cruzam e cortam feito navalha, na carne e na alma, mas nunca falo
de amor, só do mel apodrecido que ela deixou na minha boca. Já
estou tão perto que já sinto o perfume dos monstros e eles ainda
não sabem, mas vão lavar seu sangue dos meus sapatos.
Ana
Paula Maia, in coletânea Contos sobre Tela
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