Arte de Erick Rewitzer
Se
para Stubb a aparição da Lula foi coisa agourenta, para Queequeg
tudo se deu de outro modo.
“Quando
vuncê vê’ lula”, disse o selvagem, afiando seu arpão na popa
do bote suspenso, “depois tu logo vê’ Cachalote.”
O
dia seguinte foi extremamente parado e abafado, e, com nada de
especial para ocupá-la, a tripulação do Pequod quase não
conseguiu resistir ao encanto do sono gerado por um mar tão apático.
Pois aquela parte do oceano Índico por onde àquelas alturas
viajávamos não é o que os baleeiros chamam de zona agitada; ou
seja, ela oferece pouquíssimas aparições de marsopas,
peixes-voadores, e outros nativos vivos de águas mais agitadas, como
as imediações do Rio da Prata, ou ao largo das costas do Peru.
Era
minha vez de ficar no topo do mastro de proa; e, com os ombros
apoiados contra as cordas frouxas dos ovéns, para frente e para trás
eu balançava indolente no que parecia ser uma atmosfera encantada.
Nenhuma vontade conseguiria resistir; naquele divagar perdendo toda a
consciência, por fim minha alma se desprendeu do corpo; ainda que
meu corpo continuasse a oscilar como um pêndulo, muito tempo depois
de a força que lhe tinha dado impulso ter se retirado.
Antes
que o abandono total me dominasse, notei que os marinheiros no topo
dos mastros principal e de mezena estavam igualmente sonolentos. De
modo que, por fim, nós três nos balançávamos desfalecidos no
arvoredo, e para cada balanço que fazíamos havia embaixo um meneio
do timoneiro que dormitava. As ondas também meneavam suas cristas
indolentes; e, ao longo do imenso transe do oceano, o leste meneava
para o oeste, e o sol pairava sobre todos.
De
repente, pareceu-me que bolhas estouravam para além dos meus olhos
fechados; como prensas, minhas mãos se agarraram aos ovéns; uma
misteriosa força invisível me salvou; com um choque voltei à vida.
E, oh!, bem perto, a sotavento, a menos de quarenta braças, um
Cachalote gigantesco rolava pela água como o casco virado de uma
fragata, seu dorso enorme e lustroso, de uma cor Etíope, brilhando
ao sol como um espelho. Mas ondulando preguiçosa pelas cavas do mar,
e, vez ou outra, lançando tranqüila seu jato vaporoso, a baleia
parecia um burguês corpulento fumando o seu cachimbo numa tarde de
calor. Mas aquele cachimbo, pobre baleia, foi o teu último! Como se
tocado por uma varinha de condão, o navio sonolento e todos os que
cochilavam começaram de uma vez a despertar; e dezenas de vozes de
todas as partes do navio, junto com as três que vinham do alto,
lançaram o grito costumeiro, enquanto o peixe enorme, com calma e
com regularidade, esguichava no ar a salmoura cintilante.
“Arriar
os botes! Orçar!”, gritou Ahab. E, obedecendo à sua própria
ordem, baixou o leme antes que o timoneiro pudesse pegá-lo.
Os
gritos repentinos da tripulação devem ter assustado a baleia; e
antes que os botes descessem à água, virando-se com majestade, ela
nadou a sotavento, mas com tal tranquilidade, e fazendo tão pouco
movimento enquanto nadava, que Ahab, pensando que talvez ainda não
estivesse assustada, deu ordens para que nem um remo fosse usado e
que nenhuma palavra fosse proferida, senão em sussurros. Assim
sentados, tal como Índios de Ontário nas amuradas dos botes, com as
pás largas vogávamos rápida e silenciosamente; uma vez que a
calmaria não nos permitia usar as velas. Logo, enquanto desse modo
deslizávamos em seu encalço, o monstro levantou a cauda
perpendicularmente a quarenta pés no ar e afundou, desaparecendo
como uma torre que fosse tragada.
“Ali
vai a cauda!”, foi o grito, anúncio imediatamente seguido da
presteza de Stubb em pegar um fósforo e acender seu cachimbo, pois
agora haveria descanso garantido. Decorrido o intervalo da sondagem,
a baleia emergiu de novo e, estando de frente para o bote do fumante,
mais perto dele do que dos outros botes, Stubb se fez de rogado das
honras de capturá-la. Era óbvio, àquela altura, que a baleia havia
se apercebido de seus perseguidores. Todo o silêncio da cautela de
nada mais adiantava. As pás largas foram deixadas, e os remos
entraram ruidosamente em ação. Ainda dando baforadas no seu
cachimbo, Stubb incitou a tripulação ao ataque.
Sim,
uma mudança brusca acometera o peixe. Sensível ao perigo, vinha de
“cabeça para fora”; projetando obliquamente essa sua parte para
fora da espuma que produzia.
“Força,
força, meus homens! Não se apressem; demorem bastante – mas façam
força; a força de um estrondo de trovão, e só!”, gritou Stubb,
soltando a fumaça enquanto falava. “Força, agora; quero um
movimento forte e demorado, Tashtego. Força, Tash, meu jovem –
força, todos; mas mantenham a calma, mantenham a calma – frieza é
a palavra –, devagar, devagar – façam força como os demônios
sorridentes e a morte sombria, e levantem perpendicularmente os
defuntos enterrados em seus túmulos, rapazes – só isso. Força!”
“Uuh-uuh!
Uah-ih!”, berrou o nativo de Gay Head em resposta, lançando algum
antigo grito de guerra aos céus, enquanto todos os remadores no bote
tensionado foram involuntariamente jogados para a frente com o
fortíssimo golpe que o Índio impetuoso desferiu.
Mas
seus gritos selvagens foram respondidos por outros quase tão
selvagens. “Qui-ih! Qui-ih!”, bradou Daggoo, fazendo força para
a frente e para trás em seu assento, como um tigre que anda na
jaula.
“Qua-la!
Quu-lu!”, uivou Queequeg, como se estalasse os lábios abocanhando
um bom pedaço de bife. E assim, com remos e gritos as quilhas
singravam o mar. Enquanto isso, Stubb, mantendo-se à frente,
encorajava seus homens ao ataque, sem parar de baforar a fumaça.
Como criminosos destemidos eles desciam os remos e os puxavam de
volta com força, até que o grito tão esperado surgiu: “Levante-se,
Tashtego! – Ao ataque!”. O arpão foi arremessado. “À ré!”
Os remadores recuaram; no mesmo instante alguma coisa passou quente e
sibilante por seus pulsos. Era a ostaxa mágica. Pouco antes, Stubb
havia rapidamente lhe dado duas voltas adicionais em torno do posto
da arpoeira, de onde, em razão da rapidez com que corria, a fumaça
azul do cânhamo subia e se misturava às baforadas sempre presentes
de seu cachimbo. À medida que a ostaxa girava em torno do posto da
arpoeira; assim também, antes de chegar àquele ponto, ela passava
cortante pelas mãos de Stubb, das quais os panos para a mão, ou
pedaços de lona acolchoada, às vezes úteis nessas ocasiões,
haviam caído. Era como segurar pela folha a afiada espada de dois
gumes de um inimigo, enquanto este a retorce todo o tempo para
arrancá-la de suas mãos.
“Molhe
a ostaxa! Molhe a ostaxa!”, gritou Stubb para o remador da selha
(ele sentado perto da selha), o qual, tirando o chapéu, jogou água
nela. Mais voltas correram, de modo que a ostaxa começou a parar. O
bote voava naquele momento pela água agitada como um tubarão cheio
de nadadeiras. Stubb e Tashtego trocaram de lugares – popa por proa
–, uma tarefa realmente desconcertante em meio àquela comoção
balançante.
Da
ostaxa vibrante, esticada por toda a extensão da parte superior do
bote, e do fato de estar mais tensa que a corda de uma harpa, a
impressão era de que a embarcação tinha duas quilhas – uma
cortando a água, a outra o ar –, pois o bote corria agitado
através dos dois elementos opostos de uma só vez. Uma cascata
contínua se formava na proa; e um torvelinho ininterrupto na
esteira; e, ao menor movimento dentro do bote, mesmo o de um dedinho,
a embarcação, que vibrava e rangia, oscilava sua amurada convulsiva
nas águas. Assim passavam, desbragados; todos os homens agarrados
com toda a força aos bancos, para evitar serem lançados à espuma;
e a silhueta alta de Tashtego junto ao remo-guia como que se
desdobrando em duas para manter seu centro de equilíbrio. Atlânticos
e Pacíficos inteiros pareciam ficar para trás enquanto eles
disparavam em seu caminho, até que, por fim, a baleia afrouxou um
pouco sua fuga.
“Recolher
– Recolher!”, gritou Stubb ao remador da proa e, voltando-se para
a baleia, todas as mãos começaram a puxar o bote para perto dela,
enquanto o bote ainda corria a reboque. Logo chegando perto de seu
flanco, Stubb, firmando o seu joelho na tosca castanha, dardejou
dardo após dardo no peixe fugitivo; a seu comando, o bote ora
retrocedia frente às horríveis contorções da baleia, ora se
aproximava para um novo ataque.
A
corrente vermelha jorrava de todos os lados do monstro, como riachos
colina abaixo. Seu corpo torturado rolava não mais na água salgada,
mas no sangue, que borbulhava e fervia por centenas de metros em sua
esteira. O sol crepuscular, lançando luz sobre aquele lago carmim,
devolvia seu reflexo aos rostos de todos, que cintilavam entre si
como se fossem peles-vermelhas. Por todo esse tempo, jatos e mais
jatos de fumaça branca eram esguichados em agonia do espiráculo da
baleia, e baforadas e mais baforadas veementemente expelidas da boca
do oficial agitado; enquanto a cada arremesso, recolhendo a lança
retorcida (por meio da vioneira a ela presa), Stubb a endireitava,
batendo-a contra a amurada, para depois arremessá-la de novo contra
a baleia.
“Puxar
– puxar!”, gritava para o remador da proa, enquanto a baleia
abatida arrefecia sua fúria. “Puxar! – mais perto!”, e o bote
costeou o flanco do peixe. Quando estava bem em cima da proa, Stubb
cravou lentamente sua lança comprida e afiada no peixe, e ali a
manteve, revolvendo sempre de novo, cuidadoso, como se estivesse
cautelosamente procurando por um relógio de ouro que a baleia
tivesse engolido, e que ele temia que se quebrasse antes de conseguir
fisgá-lo para fora. Mas aquele relógio de ouro que procurava era a
vida mais profunda do peixe. E ele então a atingiu; pois saindo de
seu transe para aquela coisa indescritível que se chama “convulsão”,
o monstro contorceu-se terrivelmente em seu próprio sangue,
envolveu-se num impenetrável, ardente e louco vapor, de tal modo que
a embarcação a perigo, retrocedendo de imediato, teve muita
dificuldade de sair às cegas daquele crepúsculo frenético para o
ar límpido do dia.
Já
enfraquecida em sua convulsão, a baleia fez-se mais uma vez presente
aos olhos; debatendo-se de um lado para o outro; dilatando e
contraindo o espiráculo com espasmos e uma agonizante, seca e
crepitante respiração. Por fim, sopros após sopros de sangue
coagulado, como a borra púrpura do vinho tinto, foram lançados ao
ar repleto de terror; e caindo, escorreram dos flancos imóveis para
o mar. Seu coração havia estourado!
“Está
morta, senhor Stubb”, disse Tashtego.
“Sim;
os dois cachimbos se apagaram!”, e tirando-os da boca Stubb
espalhou as cinzas mortas sobre a água; e, por um instante, ficou a
olhar pensativo para o imenso cadáver que havia feito.
Herman
Melville, in Moby Dick
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