Quanto
tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por
essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim
mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um
alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco - e pelo
menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses
olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa
indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num
botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma
criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro
olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos
da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos,
fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo?
Sim, porque o que é que adianta ver?
São
seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser
concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e
carências - e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando,
tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas,
ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas
avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica,
para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha
voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato
sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam
os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os
próprios excrementos o último fruto de sua triste condição.
Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula
da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na
direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho,
a comida, o sonho. Sonho? - que sonho? Um casal capaz de criar,
produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um
fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a
filhinha que vai à escola. Escola? - que esperança!
Não,
não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma
lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro
dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem
sobre palha, são palha eles próprios - palha seca que se desfaz à
simples fricção dos dedos.
Por
que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima,
muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo
fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de
destruição; forças cuja agressividade já independe, porque
ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem
desencadear num átimo por excesso de tensão?
No
entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de
barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua
imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo,
portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo
um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que
espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado
pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado,
rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?
São
patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas
vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado,
também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única
coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e
virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina,
deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer
animal. Prazer? - que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já
inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua
nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro
ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais
tarde, aquela mesma miserável mímica.
Que
tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres
imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à
porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas
trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e
valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu,
um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com
as costelas à mostra.
Um
dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação
eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a
úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova
rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última
generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir
um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás
uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para
sustentar a prole. São gente sem história.
Meu
amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever
estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres
de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se
descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a
mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela
tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem
por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma
coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar
mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe
depressa um disco dos Beatles na vitrola.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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