A torre de concreto (1936), de Eugênio de Proença Sigaud
Às
vezes, enquanto trabalho em casa, na minha máquina, e busco no
abstrato da paisagem urbana a forma do que quero dizer, acabo
esquecendo de tudo para fixar minha atenção sobre os operários que
terminam o edifício em frente. Chegaram agora à fase em que só
falta pintar as esquadrias e dar caiação final no primeiro andar.
Venho, há meses, observando-os trabalhar, erguer a sólida estrutura
de oito pisos, com três apartamentos por andar. Vi-os situar as
fundações, levantar o cipoal de aço e cimento que era como o
esqueleto do prédio. Vi-os colocar-lhe os soalhos, enquadrar-lhe as
portas e janelas, revesti-lo de sua epiderme intensa de tijolos
refratários. Fui espectador emocionado de suas perigosas passagens
para a prancha móvel, à guisa de elevador, sobre a área mínima da
qual suspendiam-se para rebocar e caiar os grandes muros externos
laterais da construção paciente e imóvel. Juro que ouvia tambores
surdos, como antes do número de sensação ao trapézio volante de
um circo, cada vez que um daqueles homens cor de cimento fazia
arriscadíssima passagem da janela para a prancha estreita presa a
roldanas colocadas no alto do edifício. Admirei-os em suas
displicentes poses escultóricas, mãos na cintura sobre a tábua
balouçante, indiferentes à sucção do abismo aberto em espirais de
morte sob seus pés. A um vi fazer pipi lá para baixo, num perfeito
à-vontade, provocando-me necessidade idêntica, ai de mim, fruto de
uma reação de meu vago-simpático (pois que sofro de vertigem das
alturas). À noite, ouvi-os cantar, no barracão que levantaram no
pátio dos fundos, enquanto o fogo de sua cozinha rústica crepitava
no escuro e seus violões ponteavam bordões dolentes. Apreciei-os
brincar e brigar, passarem-se objetos, jogando-os com incrível
precisão, discutir problemas de construção e lances de futebol e
receber empregadas da vizinhança com as quais se internavam prédio
adentro: e que alegres voltavam desses rápidos sequestros!
Agora
a estrutura se erige - mais um apartamento na colmeia em torno - e os
operários esticam seu labor na preguiça dos retoques finais.
Ergueram o prédio. Cumpriram seu dever. Criaram com suas mãos o
plano de um arquiteto. Deram vida ao espaço. E em verdade eu vos
digo que é justo o lazer que ora se permitem, pois multiplicaram uma
só unidade residencial em muitas, capazes de abrigar as alegrias,
tristezas, amores e lutas de outros tantos homens. E, fazendo-o,
fizeram trabalho de homem.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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