domingo, 4 de novembro de 2018

Invasão do espaço sideral

Por volta de 1517, os colonizadores espanhóis nas ilhas do Caribe começaram a ouvir rumores vagos sobre um império poderoso em algum lugar no centro do território mexicano. Meros quatro anos depois, a capital asteca estava praticamente em ruínas, o Império Asteca era coisa do passado, e Hernán Cortés dominava um novo e vasto império espanhol no México.
Os espanhóis não pararam para comemorar nem para tomar fôlego. Eles imediatamente deram início a operações de exploração e conquista em todas as direções. Os governantes anteriores da América Central – os astecas, os toltecas, os maias – mal sabiam que a América do Sul existia e jamais haviam feito qualquer tentativa de subjugá-la, ao longo de 2 mil anos. No entanto, em pouco mais de dez anos, Francisco Pizarro descobriu o Império Inca na América do Sul, e o subjugou em 1532.
Se os astecas e os incas tivessem mostrado um pouco mais de interesse pelo mundo à sua volta – e se soubessem o que os espanhóis haviam feito com seus vizinhos –, poderiam ter resistido melhor à conquista espanhola. Nos anos que separam a primeira viagem de Colombo à América (1492) da chegada de Cortés no México (1519), os espanhóis conquistaram a maior parte das ilhas do Caribe, fundando um conjunto de novas colônias. Para os nativos subjugados, essas colônias eram o inferno na Terra. Eles eram governados com mão de ferro por colonizadores gananciosos e inescrupulosos que os escravizavam e os colocavam para trabalhar em minas e lavouras, matando qualquer um que oferecesse a menor resistência. A maior parte da população nativa morreu logo, por causa das árduas condições de trabalho ou da virulência das doenças que pegaram carona para a América nos navios dos conquistadores. Em 20 anos, quase toda a população nativa do Caribe foi exterminada. Os colonizadores espanhóis começaram a importar escravos africanos para preencher o vácuo.
Esse genocídio aconteceu bem diante do Império Asteca, mas, quando Cortés chegou à costa oriental do império, os astecas não sabiam nada a respeito. A chegada dos espanhóis foi o equivalente a uma invasão alienígena vinda do espaço sideral. Os astecas estavam convencidos de que conheciam o mundo inteiro e de que governavam a maior parte dele. Para eles, era inimaginável que fora de seu domínio pudesse existir alguma coisa como os espanhóis. Quando Cortés e seus homens aportaram nas praias ensolaradas da atual Vera Cruz, foi a primeira vez que os astecas encontraram pessoas completamente desconhecidas.
Os astecas não souberam como reagir. Tiveram dificuldade em decidir o que eram aqueles estranhos. Ao contrário de todos os humanos conhecidos, os alienígenas tinham pele branca. Também tinham muitos pelos no rosto. Alguns tinham cabelo da cor do sol. Tinham um odor terrível. (A higiene dos nativos era muito melhor que a higiene dos espanhóis. Quando os espanhóis chegaram pela primeira vez no México, nativos portando queimadores de incenso foram incumbidos de acompanhá-los onde quer que eles fossem. Os espanhóis pensaram que fosse um sinal de honra divina. Sabemos, com base em fontes dos nativos, que eles consideravam o cheiro dos recém-chegados insuportável.)
A cultura material dos forasteiros era ainda mais impressionante. Eles chegaram em embarcações gigantescas, de um tipo jamais imaginado, muito menos visto pelos astecas. Cavalgavam no dorso de animais enormes e assustadores, rápidos como o vento. Eram capazes de produzir relâmpago e trovão com espetos brilhantes de metal. Tinham espadas compridas e reluzentes e armaduras impenetráveis, contra as quais as espadas de madeira e as lanças de sílex dos nativos eram inúteis.
Alguns astecas pensaram que decerto se tratava de deuses. Outros afirmavam que eram demônios, ou o fantasma dos mortos, ou feiticeiros poderosos. Em vez de concentrar todas as forças disponíveis e exterminar os espanhóis, os astecas deliberaram, perderam tempo e negociaram. Não viram motivo para se apressar. Afinal, Cortés tinha não mais de 550 espanhóis consigo. O que 550 homens poderiam fazer a um império de milhões?
Cortés era igualmente ignorante acerca dos astecas, mas ele e seus homens tinham vantagens significativas sobre os adversários. Enquanto os astecas não tinham experiência alguma em se preparar para a chegada desses forasteiros de aparência estranha e odor repugnante, os espanhóis sabiam que o planeta estava cheio de reinos humanos desconhecidos, e ninguém era mais perito que eles em invadir terras estrangeiras e lidar com situações sobre as quais eram totalmente ignorantes. Para o conquistador europeu moderno, assim como para o cientista europeu moderno, mergulhar no desconhecido era estimulante.
Então, quando ancorou naquela praia ensolarada em julho de 1519, Cortés não hesitou em agir. Como um alienígena de ficção científica saindo de sua espaçonave, ele declarou aos locais boquiabertos: “Nós viemos em paz. Levem-nos ao seu líder”. Cortés explicou que era um emissário pacífico do grande rei da Espanha e pediu uma entrevista diplomática com o governante asteca, Montezuma II. (Isso era uma mentira deslavada. Cortés liderou uma expedição independente de aventureiros gananciosos. O rei da Espanha nunca tinha ouvido falar de Cortés nem dos astecas.) Cortés recebeu guias, alimentos e algum auxílio militar de inimigos locais dos astecas. Então, marchou rumo à capital asteca, a grande metrópole de Tenochtitlán.
Os astecas permitiram que os forasteiros marchassem até a capital e então, respeitosamente, conduziram seu líder ao encontro do imperador Montezuma. No meio da entrevista, Cortés deu um sinal, e espanhóis com armaduras de aço assassinaram os guarda-costas de Montezuma (equipados apenas com porretes de madeira e lâminas de pedra). O convidado de honra fez de seu anfitrião um prisioneiro.
Cortés estava agora em uma situação muito delicada. Ele havia capturado o imperador, mas estava cercado por dezenas de milhares de guerreiros inimigos furiosos, milhões de civis hostis e todo um continente sobre o qual ele não sabia praticamente nada. Tinha à sua disposição apenas algumas centenas de homens, e os reforços espanhóis mais próximos estavam em Cuba, a mais de 1,5 mil quilômetros de distância.
Cortés manteve Montezuma cativo no palácio, fazendo parecer que o rei continuava livre e no comando e que o “embaixador espanhol” era não mais do que um convidado. O Império Asteca era um regime político extremamente centralizado, e essa situação sem precedentes o paralisou. Montezuma continuou a se comportar como se governasse o império, e a elite asteca continuou a obedecê-lo, o que significava que obedecia a Cortés. Tal situação se prolongou por meses, durante os quais Cortés interrogou Montezuma e seus criados, capacitou tradutores em vários idiomas locais e enviou pequenas expedições de espanhóis em todas as direções para se familiarizar com o Império Asteca e as várias tribos, povos e cidades por ele governados.
A elite asteca acabou por se voltar contra Cortés e Montezuma, elegeu um novo imperador e expulsou os espanhóis de Tenochtitlán. No entanto, a essa altura várias rachaduras haviam aparecido no edifício imperial. Cortés usou o conhecimento que havia adquirido para forçar ainda mais as rachaduras e destruir o império de dentro para fora. Convenceu muitos dos súditos do império a se unirem a ele contra a elite asteca. Os súditos calcularam mal. Eles odiavam os astecas, mas não sabiam nada sobre a Espanha nem sobre o genocídio no Caribe. Presumiram que, com a ajuda espanhola, poderiam abalar a influência asteca. A ideia de que os espanhóis assumiriam o poder jamais lhes ocorrera. Eles tinham certeza de que, se Cortés e suas poucas centenas de escudeiros causassem algum problema, poderiam ser subjugados facilmente. Os povos rebeldes forneceram a Cortés um exército de dezenas de milhares de tropas locais, e com essa ajuda Cortés cercou Tenochtitlán e conquistou a cidade.
Nessa época, cada vez mais soldados e colonizadores espanhóis começaram a chegar ao México, alguns vindos de Cuba, outros da Espanha. Quando os povos locais perceberam o que estava acontecendo, era tarde demais. Um século após a chegada dos espanhóis em Vera Cruz, a população nativa das Américas havia encolhido 90% devido sobretudo a doenças desconhecidas que chegaram à América com os invasores. Os sobreviventes se encontravam sob o domínio de um regime racista e ganancioso que era muito pior que o dos astecas.
Dez anos depois que Cortés aportou no México, Pizarro chegou à costa do Império Inca. Ele tinha muito menos soldados do que Cortés – sua expedição totalizava apenas 168 homens! Mas Pizarro se beneficiou de todo o conhecimento e de toda a experiência obtidos nas invasões anteriores. Os incas, por sua vez, não sabiam nada sobre o destino dos astecas. Pizarro plagiou Cortés. Ele se declarou um emissário pacífico do rei da Espanha, convidou o governante inca, Atahualpa, para uma entrevista diplomática e então o sequestrou. Pizarro seguiu em frente, conquistando o império paralisado com a ajuda dos aliados locais. Se os súditos do Império Inca conhecessem o destino dos habitantes do México, não teriam se unido aos invasores. Mas eles não sabiam.
Os povos nativos da América não foram os únicos a pagar um preço alto por sua visão tacanha. Os grandes impérios da Ásia – o otomano, o safávida, o mogol e o chinês – logo ficaram sabendo que os europeus haviam descoberto algo grande, mas mostraram pouco interesse por essas descobertas. Continuaram a acreditar que o mundo girava em torno da Ásia e não fizeram qualquer tentativa de competir com os europeus pelo controle da América ou das novas rotas marítimas no Atlântico e no Pacífico. Até mesmo reinos europeus pequenos como a Escócia e a Dinamarca enviaram algumas expedições de exploração e conquista para a América, mas nem uma de tais expedições jamais partiu do mundo islâmico, da Índia ou da China. A primeira potência não europeia que tentou enviar uma expedição militar à América foi o Japão. Isso aconteceu em junho de 1942, quando uma expedição japonesa conquistou Kiska e Attu, duas pequenas ilhas na costa do Alasca, capturando, no processo, dez soldados norte-americanos e um cachorro. Isso foi o mais perto que os japoneses chegaram do continente.
É difícil argumentar que os otomanos ou os chineses estavam longe demais, ou que careciam dos meios tecnológicos, econômicos ou militares necessários. Os recursos que enviaram Zheng He da China à África Oriental nos anos 1420 deviam ser suficientes para chegar à América. Os chineses simplesmente não estavam interessados. O primeiro mapa-múndi chinês a mostrar a América só foi publicado em 1602 – e por um missionário europeu!
Durante 300 anos, os europeus desfrutaram de supremacia indisputada na América e na Oceania, no Atlântico e no Pacífico. As únicas batalhas significativas nessas regiões foram entre potências europeias. A riqueza e os recursos acumulados pelos europeus nessas áreas acabaram por lhes permitir invadir também a Ásia, derrotar os impérios asiáticos e dividi-la entre si. Quando otomanos, persas, indianos e chineses despertaram e começaram a prestar atenção, era tarde demais.
Foi só no século XX que culturas não europeias adotaram uma visão verdadeiramente global. Esse foi um dos fatores cruciais que levaram ao colapso da hegemonia europeia. Assim, na Guerra de Independência da Argélia (1954-1962), as guerrilhas argelinas derrotaram um exército francês que gozava de uma esmagadora vantagem numérica, tecnológica e econômica. Os argelinos prevaleceram porque foram apoiados por uma rede mundial anti-imperialismo e porque souberam mobilizar os meios de comunicação de todo o mundo a favor de sua causa, bem como a opinião pública na própria França. A derrota que o pequeno Vietnã do Norte infligiu ao colosso norte-americano se baseou em uma estratégia similar. Essas forças guerrilheiras mostraram que até mesmo as superpotências podiam ser derrotadas se uma batalha local fosse transformada em uma causa global. É interessante pensar no que teria acontecido se Montezuma tivesse sido capaz de manipular a opinião pública espanhola e obter auxílio de um dos rivais da Espanha – Portugal, a França ou o Império Otomano.
Yuval Noah Harari, in Homo sapiens: uma breve história da humanidade

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