IV
Entre
os berros e as ameaças dos zelotes, alguns integrantes do Conselho
vacilaram. Mesmo assim, na reunião do dia 18 de março, a maioria
permaneceu fiel às suas convicções, e a polêmica nomeação foi
confirmada por 11 votos contra 7. A oposição esperava essa a
derrota e estava pronta para atacar em todas as frentes. Havendo
fracassado em obter a anulação da nomeação de Russell para a
Faculdade Municipal, tentaram impedir que ele lecionasse em Harvard.
Russell havia sido convidado para dar as aulas William James lá no
semestre de outono [o primeiro semestre do ano letivo, com início em
setembro] de 1940. No dia 24 de março, Thomas Dorgan, “agente
legislativo” da cidade de Boston, escreveu ao reitor James B.
Conant: “O senhor sabe que Russell defende o casamento igualitário
e o relaxamento das obrigações que restringem a conduta moral.
Contratar esse homem, convém observar, é um insulto a todos os
cidadãos americanos do Estado do Massachusetts”.
Ao
mesmo tempo, a Assembleia Legislativa do Estado de Nova York recebeu
o pedido para que fizesse com que o Conselho de Educação Superior
rescindisse a nomeação de Russell. O senador Phelps, democrata de
Manhattan, apresentou uma resolução que colocaria a Assembleia como
assumindo publicamente a posição de que “um defensor da
moralidade baixa é pessoa inadequada para ocupar posto importante no
sistema educacional de nosso Estado, à custa dos contribuintes”.
Essa resolução foi adotada, e até onde sei, nenhuma voz se ergueu
em oposição a ela.
Tal
resolução foi o prelúdio de uma ação mais drástica. Onze
integrantes do Conselho de Educação Superior haviam se mostrado tão
teimosos a ponto de desafiar as ordens da hierarquia. Os hereges
precisavam ser punidos. Era preciso mostrar a eles quem detinha o
verdadeiro poder no Estado de Nova York. Baseando sua opinião nas
afirmações do bispo Manning e do reitor Gannon, da Universidade
Fordham, o senador John F. Dunigan, líder da minoria, declarou ao
Senado que a filosofia de Russell “debocha da religião, do Estado
e das relações familiares”. Reclamou das “teorias ímpias e
materialistas daqueles que hoje governam o sistema escolar da cidade
de Nova York”. A atitude do Conselho, que “insistiu na nomeação
de Russell apesar da grande oposição pública”, o argumentou
senador, “é uma questão de preocupação para esta Legislatura”.
Ele exigiu uma investigação completa do sistema educacional da
cidade de Nova York e deixou claro que tal investigação teria como
alvo principal as instalações universitárias controladas pelo
Conselho de Educação Superior. A resolução do senador Dunigan
também foi adotada, com apenas uma pequena modificação.
Mas
esses foram apenas conflitos menores. A manobra principal foi
conduzida na própria cidade de Nova York. Uma tal sra. Jean Kay, do
Brooklyn, que não tivera nenhum destaque anterior por seu interesse
nas questões públicas, preencheu um formulário de queixa de
contribuinte na Suprema Corte de Nova York para invalidar a nomeação
de Russell, sob a alegação de ele ser estrangeiro e defensor da
imoralidade sexual. Ela se declarou pessoalmente preocupada com o que
poderia acontecer à sua filha Gloria, caso se formasse aluna de
Bertrand Russell. O fato de que Gloria Kay poderia não ser aluna de
Russell na Faculdade Municipal aparentemente não foi considerado
relevante. Posteriormente, os advogados da sra. Kay apresentaram
outras duas razões para barrar Bertrand Russell. Por um lado, ele
não fora testado quanto à sua competência e, por outro, “era
contrário à política pública indicar como professor qualquer
pessoa que acreditasse no ateísmo”.
A
sra. Kay foi representada por um advogado chamado Joseph Goldstein,
que, sob a administração Tammany anterior a LaGuardia, fora
magistrado municipal. Em sua ação, Goldstein descreveu as obras de
Russell como “devassas, libidinosas, lascivas, venéreas,
erotomaníacas, afrodisíacas, irreverentes, limitadas, mentirosas e
desprovidas de fibra moral”. Mas isso não foi tudo. De acordo com
Goldstein, “Russell dirigia uma colônia de nudismo na Inglaterra.
Seus filhos desfilavam nus. Ele e sua esposa desfilavam nus em
público. Esse homem, que tem hoje cerca de setenta anos, é adepto
da poesia devassa. Russell assente à homossexualidade. Eu iria ainda
mais longe e diria que ele a aprova.” Mas nem isso foi tudo.
Goldstein, que presumivelmente passa seu tempo livre estudando
filosofia, concluiu sua acusação com um veredicto a respeito da
qualidade do trabalho de Russell. Esse veredicto danoso diz o
seguinte:
Ele
não é filósofo na verdadeira acepção da palavra; não é alguém
que ame a sabedoria; nem alguém que busque a sabedoria; não é um
explorador dessa ciência universal, que tem como objetivo a
explicação de todos os fenômenos do universo por meio de suas
causas supremas. Na opinião de seu depoente e de uma multidão de
outras pessoas, é um sofista; pratica o sofismo; ao dissimular
artifícios, engana e trama e por meio de evasivas, apresenta
argumentos falaciosos e argumentos que não são embasados pelo
raciocínio sólido; tira conclusões que não são deduzidas de
premissas sólidas; e todas as suas supostas doutrinas, que ela chama
de filosofia, não passam de fetiches e proposições baratas, de mau
gosto, desgastadas e remendadas, arquitetadas com a intenção de
desviar as pessoas.
De
acordo com o jornal Daily News, nem a sra. Kay, nem seu
marido, nem Goldstein diziam quem estava pagando as custas do
processo.
Russell,
até esse ponto, abstivera-se de tecer qualquer comentário, a não
ser uma breve declaração, logo no início da campanha, em que
dissera: “Não tenho desejo de responder ao ataque do bispo Manning
(...). Qualquer pessoa que na juventude decida tanto falar quanto
pensar com honestidade, independentemente da hostilidade e das
interpretações errôneas, espera tais ataques e logo aprende que o
melhor é ignorá-los”. No entanto, agora que o ataque fora levado
a um tribunal de Justiça, Russell sentiu-se na obrigação de
publicar uma resposta. “Até agora, mantive um silêncio quase
ininterrupto a respeito da controvérsia relativa à minha indicação
à Faculdade Municipal”, ele observou, “porque não pude admitir
que minhas opiniões fossem relevantes. Mas, quando afirmações
grosseiramente mentirosas a respeito de minhas ações são feitas em
juízo, sinto que devo apresentar a minha versão. Nunca conduzi uma
colônia de nudismo na Inglaterra. Nem minha esposa nem eu jamais
desfilamos nus em público. Nunca fui adepto de poesias devassas.
Tais afirmações são falsidades deliberadas, e aqueles que as
proferem devem saber que elas não têm fundamento nos fatos. Ficarei
feliz se tiver a oportunidade de negá-las sob juramento.” Deve-se
ainda ajuntar que Russell jamais “aprovou” o homossexualismo. Mas
esse é um ponto que discutirei em detalhes mais à frente.
A
acusação da sra. Kay foi ouvida pelo juiz McGeehan, que antes
estivera associado à máquina do Partido Democrático do Bronx.
McGeehan já tinha, antes desse caso, destacado-se ao tentar fazer
com que um retrato de Martinho Lutero fosse removido de um mural que
ilustrava a história do Direito em um fórum. Nicholas Bucci,
advogado interno assistente, representou o Conselho de Educação
Superior. Com muita propriedade, recusou-se a ser arrastado para uma
discussão a respeito das opiniões malignas de Russell e de sua
incompetência como filósofo. Ateve-se ao único ponto legalmente
relevante do processo – que um estrangeiro não podia ser nomeado
para um posto em faculdade municipal. Bucci negou que esse fosse o
caso e, assim, pediu que o processo fosse arquivado. McGeehan
respondeu, ameaçador: “Se eu descobrir que esses livros dão
sustentação às alegações da petição, darei algo sobre o que
refletir à Divisão de Recursos e ao Tribunal de Apelação”. Os
livros aqui referidos foram os indicados por Goldstein para apoiar
suas acusações. Eram Education and the Good Life [A Educação
e a Boa Vida], Marriage and Morals [Casamento e Moral],
Education and the Modern World [Educação e o Mundo Moderno]
e What I Believe [No que eu Acredito].
Paul
Edwards, in Apêndice de Porque não sou cristão, de
Bertrand Russell
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